Sebastião Pinheiro
Estarrecido acompanhei as manifestações cinquentenárias
do início da última ditadura. Li material dos dois lados. Consternado reflito:
Quando existiu democracia anteriormente, já que certas “liberdades” não
garantem sua existência. Para o exercício da cidadania é indispensável que o
Estado esteja a serviço de todos e não para alguns, “mais iguais” das elites
nacional togada, fardada, batinada ou esfarrapada, onde toda e qualquer
repressão e morte são instrumentos de intimidação (medo e terror).
Festejos com nostalgia nas lembranças épicas para uns,
memória “denigrante” para outros reflete como algo não superado nem
transformado. Como disse o artista: “Faz parte do meu show”. O uso de ditados
exóticos transparece erudição; Os russos dizem: “Quem olha para o passado se
arrisca a perder um olho, mas quem não olha perde os dois.” Já os genuínos
tupis e tapuias diziam: “Jamais levante a casca de uma pereba, pois podes
conhecer a real dimensão da ferida”. Vida republicana que, aqui está atrasada
anos luz da cidadania para todos (de forma pública). Não confundam, mercado e
consumo é outra coisa e há bastante e de boa qualidade nos EUA e adjacências.
Reflita, quantos presidentes dignamente eleitos
conseguiram terminar seus mandatos e passar o poder para o seu sucessor também
eleito desde a instauração (golpista) da república? Entre os 34 foram raros e
isso não foi privilégio nosso, nem de nossos vizinhos. Onde a cidadania deveria
ser mais consolidada tivemos no Século XX as ditaduras, franquista,
salazarista, grega, turca, filipina se quisermos ficar próximos ao Primeiro
Mundo e muito similar ao presente entre árabes, africanos e asiáticos.
Não queremos ver, mas os interesses bancários (e
industriais) são hegemônicos e únicos sobrepondo-se a tudo como uma escola. Há
tutela e qualquer alteração deverá ser de forma “lenta, gradual e irrestrita”
pelos preceitos do Council Foreign Relations, que impôs a “abertura” e todas
suas consequências (e que o Golbery explicou serem os movimentos de diástole e
sístole). Contudo, quantos bancos havia antes do golpe de 64? Quantos há agora
e quantos haverá no futuro próximo? De onde surgiu o HSBC, que é milenar e faz
parte do acordo pela devolução e dívida por Hong Kong.
Antes de comemorar a presença das diminutas escaras
(casquinha de ferida), vejamos: O Fulgêncio Batista acumulou tanta “entropia”
(energia incapaz de realizar trabalho para o Império) e sua substituição por
Fidel Castro era aceita no anseio de transformar a insatisfação em energia
livre, renovação, mas eis que deram com os “burros n’água”. O mais importante é
que mesmo sendo uma ilha, foram obrigados a mudar de lado e servir ao poder
antagônico até serem abandonados à própria sorte...
Aqui mantiveram o congresso aberto, mudavam o gorila de
turno, para atenuar a entropia e favorecer a concentração financeira. A
abertura é concomitante com a reaproximação da China (Nixon) e imposta por
Carter com sua política de “direitos humanos”. Palavra que hoje é repetida de
forma estranha: A soberania alimentar é um direito humano; A “merenda escolar”
é um direito humano. Palram como os papagaios e caturritas, pois antes a ordem
era: Há fome no mundo (não a de Josué de Castro) e alinharam a todos em dois polos;
Depois veio a “A segurança alimentar” do CIFR-Fundação Rockefeller aproveitando
reflexo (medo) da Lei de Segurança Nacional e por fim a soberania alimentar e
merenda escolar-direito humano, comemorando a democracia, quando nos
supermercados há a cada dia maior espaço para comida para cães e gatos.
Os festejos da redentora me são indeléveis: 397 anos
depois de sua fundação por São José de Anchieta nela nasci; Órfão fui criado
por tios, mas em 1960 quis viver com minha mãe, operária têxtil e irmão menor.
Prestei exame de admissão para o único ginásio (noturno) “gratuito” de São
Gonçalo/RJ graças à complacência de um exilado argentino (Don Villafañe), que
mesmo fora do prazo me inscreveu: “São 600 e há 20 vagas, das quais 4
reservadas para os políticos do PTB de Miguel Couto Filho...” Eu tinha então
doze anos e fui o quarto classificado, graças à escola que começou com São José
de Anchieta e se manteve pública pelo valor do café e organização social.
Lembro, o primeiro colocado, Sr. Expedito tinha 35 anos; O segundo Elber, 24
anos, pára-quedista profissional do Exército: A Terceira Elida 21 anos. Quando
me chamaram todos riram, pois eu era uma criança e usava calça curta. O
governador do Estado do Rio era Roberto Silveira (PTB ), que alugava peças em
casas de correligionários e fazia de conta que abria escolas. Isto é república,
é uma democracia?
Diante do sucesso inusitado de seu rebento, minha mãe
levou-me ao Colégio público Henrique Lage, em Niterói para tentar inscrever
para fazer exame, mas o diretor dissuadiu-a, ao fazer meia dúzia de perguntas a
ela, não a mim... Entendi que a escola era para ricos e não para todos.
Desde a favela do Mutuapira acompanhei a renúncia
“golpista” de Jânio suas consequências em diferentes etapas através do
“parlamentarismo” enquanto o golpe era fomentado, como pode ser bem documentado
no livro-tese do uruguaio Andrés Dreiffus em 1983, já aposentado da UFMG. Todo
mundo fala no infame Lincoln Gordon, mas nenhuma referência é feito ao
“afogamento” do embaixador soviético Ilya Tchernitshov na praia de Copacabana.
O jogo era pesado e estava muito além do poder local.
Eu trabalhava como “Office boy” no Depto. Comercial da
Legação da República Popular da Bulgária e trabalhei na Feira de São Cristovão
(aquela da bomba da CIA; bombas no Cine Bruni etc.), onde o outro lado expunha
seus produtos na abertura para o Leste contrariando a Ordem Imperial da Guerra
Fria. Esse é o golpe no mundo e nós nos masturbamos como se existisse um poder,
autonomia, autocontrole nacional. Lembram do Geisel em Londres acompanhando Sua
Majestade Real no Museu da II Guerra Mundial dizendo que não via nele uma
bandeira brasileira e que iria providenciá-la... Escola cidadã evita gafes.
Contemporizo lembrando o príncipe holandês Barnhard subornado pela Lookhead e a
abdicação de Juliana.
O ambiente da favela é a escola brutal para a rebeldia ou
servidão, já no limiar da marginalidade retornei à cidade fundada por São José
de Anchieta, através da transferência para o novo Escritório da Legação da
Bulgária, instalado no sétimo andar do Edifício Triângulo, construído por
Niemayer no cruzamento das ruas Direita, Quintino Bocaiúva e José Bonifácio.
Ali aprendi espanhol, lia estudava o jornal “Novos Rumos”, como também o
distribuía em mais de cem lugares. O convívio com os diplomatas búlgaros me fez
pensar em diplomacia, mas a clareza de ausência de cidadania, não de democracia
demoveu-me e graças a eles fui estudar agricultura para ter casa, comida e
estudo. Depois do desastrado discurso na Central do Brasil. Em 15 de março
Nissim Nissimov, Cristo Gumnerov, Vodnentcharov e Madrik Zahakian avisaram que iam
ficar “recolhidos” no Rio de Janeiro. Nissim pediu-me que queimasse todos os
livros, selos de primeiro dia de circulação e lembranças, pois uma noite longa
e dolorosa se debruçaria sobre a nação. Fiquei sozinho no escritório e no dia
19 de março antes do meio dia, bateram à porta, um agente do DOPS e um oficial
da Aeronáutica e queriam entrar. Foram barrados. Disseram que o escritório
devia ser fechado, pois o governo do Estado havia declarado ponto facultativo
pela “Marcha com Deus pela Família e Liberdade” ia passar pela Rua Direita rumo
à Praça da Sé com a Dona Leonor esposa do governador...
Eu gostava de ficar no escritório, pois aproveitava mais
para estudar e fazer os deveres do último ano de ginásio noturno no Estadual do
Imirim, que era extremamente difícil pela má qualidade cidadã no ensino de
donde eu vinha. Arrogante, como todo favelado que deseja exercer cidadania:
apontei a placa onde dizia em dois alfabetos Legação da República Popular da
Bulgária e arrematei os senhores sabem ler o que está escrito aqui. Isso aqui
não é um órgão público paulista é uma representação diplomática da R.P. da
Bulgária. Ganhei um cascudo e um tapa na orelha. Nesses dias era muito
estranho, havia a ação da R.U.P.A (Ronda Unificada da Primeira Delegacia
Auxiliar) que prendia trezentas a quatrocentas pessoas espalhando terror na
cidade. Muitos tirados da cadeira do barbeiro, de dentro do ônibus e até de
cinema. Era um período de treinamento com intimidação e medo, muito antes do
golpe.
Veio o primeiro de abril, para mim um dia especial, meu
aniversário. Vi as livrarias da Quintino Bocaiúva serem invadidas por militares
e os livros destruídos e recolhidos por caminhões na calçada. O mesmo vi nos
correios com a Revista “Cuba Hoy”; O Depto. Comercial da Legação da Hungria foi
invadido e seus diplomatas foram maltratados. Acompanhei a prisão dos
diplomatas chineses e as acusações que eram espiões e possuíam armas etc. Vi a
campanha de “Ouro para o Bem do Brasil”, recolhendo alianças e relógios
antigos.
No fim do ano conclui o ginásio e atendendo as
recomendações dos búlgaros fui estudar no Colégio Agrícola. Ali era preciso
dissimular, pois lá toda semana havia o controle da repressão de Ribeirão
Preto. Formado tirei meu passaporte 709842 assinado pelo mesmo oficial da
Aeronáutica que me outorgara um cascudo na porta do Depto Comercial da Legação.
Fui para a Argentina. Voltei e vi duas coisas fantásticas no Rio Grande do Sul:
- 1200 moinhos coloniais fechados pela ditadura em cumprimento à Ordem do
CIFR-Rockefeller dono da Purina e que não queria que a gauchada fizesse suas
próprias rações; Hoje monopoliza as rações e expandiu para os animais
domésticos. - Mais de seiscentas Caixas de Empréstimo Cooperativas Rurais tipo
Reiffeissen que funcionavam em todo o Estado auto-financiando os Agricultores
foram proibidas e fechadas pelo mesmo CIFR-Rockefeller. Primeiro centralizaram
o crédito estatal para disciplinar e depois o internacionalizaram. Foi criado o
AGIPLAN para que as sementes de grandes corporações substituíssem as locais; O II
PNDA projetava o consumo de agrotóxicos para 280 mil toneladas em 1980, quando
ele estava em 16 mil toneladas.
Geisel cumpriu a ordem do CIFR-ROCKEFELLER e criou o
PROCAL. A venda era pelo banco do Brasil, através de crédito rural, mas
devolvia em dinheiro vivo 40% do valor da nota apresentado ao caixa do mesmo
banco. A farra transformou-se em súcia no Adubo Papel. As cooperativas de
feijão, milho e trigo se transformaram em cooperativas de soja, e hoje é uma
entidade para-Monsanto.
Uma das coisas que mais me emocionou, em 1973, em Quatro
Irmãos/RS foi uma escolinha pré-fabricada de madeira em uma ladeira quase em
meio a uma plantação de soja cheia de crianças. Desdenhosamente era chamada de
“churrasqueira do Brizola”, mas ali pude entender que a educação não era
questão de partido, pois ele também era do PTB, nem de pessoas, mas de
sociedade. Para se ter uma democracia é necessária a cidadania e não rebeldia
ou servidão. Violências levam a ditaduras e justificam as repressões. Jango foi
humanista e evitou o que aconteceu em Jacarta (1965) no ano seguinte, meio
milhão de jovens mortos... Dois anos antes mediara a crise nuclear cubana.
Triste, em 1971 o livro que mais ocupava as vitrines na Rua Barão do
Itapetininga era “Minha Luta”, de Adolfo Hitler. Henry Ford queria seus
automóveis funcionando com óleo de soja, impedido escreveu “o Judeu
Internacional”, que estimulou os nazistas e O anti-semitismo. Na foto está
Hitler em um campo de soja na Europa.
Os golpes beneficiam muitos em seus interesses pessoais
corruptos, perseguem e prejudicam a quem os contrariam ou deseja cidadania.
Esse embate não constrói democracia, pois ela se baseia não em votos, mas em
estruturas cidadãs com direitos e deveres para todos.
Cinquenta anos depois do último golpe foi expurgada a
corrupção? Foi extirpado o Analfabetismo? Há utopia quando o rebelde de ontem é
o condenado encarcerado por corrupção hoje? O golpista de ontem continua
dicotômico: vítima para uns e salvador da pátria para outros. Dentro de outros cinquenta
anos é possível que tenhamos outras “viúvas” e “vivandeiras de quartel”. Afinal
e a cidadania? Raros são os sobreviventes que sabem o que significava um
“moinho colonial” em uma comunidade; Pior, hoje a grande maioria crê que o
sistema de crédito cooperativo atual é o mesmo que se tinha antes, pois
esquecem o contexto...
O açodamento na compra da Refinaria Pasadena era
contrapartida ao visitante Bush Jr. (março de 2006); Exportação de
Álcool-Biodiesel e perspectivas eleitorais (SP)? A Lavagem de 10 bilhões por
burocrata da Petrobrás é consequência?
Nos festejos não vi uma linha sequer dizendo: Democracia
é cidadania para todos (direitos, deveres, prêmios e punições). Cidadania não
permite que uns se beneficie do sacrifício de outros. Golpe é governo para os
amigos com licença para roubar em desrespeito às utopias. Enquanto continuar
assim acordaremos todos os primeiros de abris esperando a presepada escrota. Eu
infelizmente serei obrigado esperar os “Parabéns a Você”.
Rogar a São José de Anchieta para transformar o Brasil em uma grande escola; Ou
seria melhor fazê-lo a Lutero (Georg Spalatin (Burkhardt) que cem anos antes de
“Didática Magna”, de 1625 do Bispo Comenius já preconizavam “A primitiva
natureza do homem era boa: A ela libertando-nos da corrupção devemos regressar.”
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