As imagens exibidas nesta quarta e quinta-feira (17 e 18), onde indígenas de várias etnias ocuparam o plenário da Câmara dos Deputados e o Palácio do Planalto são emblemáticas na semana que marca o Dia do Índio. Os povos que resistem desde a chegada dos colonizadores nestas terras hoje enfrentam um novo ciclo de desenvolvimentismo, no qual o Estado brasileiro é seu principal financiador. Mais do que elencar empresas que lucram sob o custo da morte de indígenas e focar a luta somente contra essas corporações, é preciso localizar as recentes movimentações políticas que colocam em questão se o Dia do Índio é uma data de festa ou se é uma data de guerra.
A expansão das fronteiras agrícolas no país é inquestionável e ao contrário do que muitos imaginam, os últimos anos também foram marcados pelo aumento da concentração de terras no Brasil. E, absolutamente contrária à versão dos governos, empresários e grande mídia, isso não significa desenvolvimento algum para a maioria da população brasileira, em especial para os povos indígenas.
Diferente das análises que até reconhecem a exploração desenfreada das terras pelo agronegócio mas omitem o papel do Estado brasileiro, é preciso que se diga que os governos petistas, nesses últimos dez anos, têm sido responsáveis diretos e indiretos pela dramática situação de vida dos povos indígenas.
Depois de dez anos da chegada do Partido dos Trabalhadores na Presidência da República, em composição com as forças políticas da direita tradicional e latifundiária, os povos indígenas acumularam nomes de lideranças em suas listas de mortos, viram suas terras tradicionais usurpadas, suas florestas desmatadas, suas águas envenenadas pelos agrotóxicos e seus direitos básicos como educação e saúde sendo ignorados.
A surpresa dos nobres deputados e deputadas ao verem lideranças indígenas em seu ambiente de trabalho – e negociatas – é simbólica do senso comum da burguesia brasileira, que acredita que esses povos estejam alheios e distantes de suas decisões. Mas não, estes povos são e sempre foram uma força política viva da sociedade.
Foi com a ajuda de várias lideranças indígenas que o petismo acumulou forças em torno de um projeto para alcançar o poder. Como resposta receberam, por exemplo, um acordo entre Lula e Bush para a produção em larga escala de etanol. Viram o país autorizar o uso de agrotóxicos no campo e sentem na pele o que significa sermos os recordistas de uso de venenos nos alimentos. Assistem cotidianamente a instalação de novas usinas de cana patrocinadas pelo Governo Federal via Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Ouviram o anúncio do Projeto de Aceleração do Crescimento (PAC), nas versões I e II, assim como têm sido despejados de suas terras para a construção de mega-obras para responder a demandas de empresários. Foram descartados em nome da exploração de recursos naturais para exportação. E choraram, sob os milhares novos pés de cana e soja, a morte de centenas de lideranças, como o cacique Marcos Veron, indígena Guarani Kaiowá assassinado após a retomada de sua terra tradicional, em 2003.
O discurso da conciliação entre indígenas e agronegócio têm servido, há anos, para que os poderosos evitem resistências ao seu projeto de “desenvolvimento”. E agora, enquanto diversas etnias, como os Tupinambás da Bahia, reforçam atos de retomadas de terras, o Estado prepara artifícios jurídicos que reduzem ainda mais as possibilidades de demarcação de terras indígenas.
A PEC 215, que transfere a responsabilidade da demarcação de terras das mãos da Presidência para o Congresso, é uma dessas iniciativas. Se o parâmetro da correlação de forças no Congresso for a nova lei do Código Florestal, que significou mais benefícios ao agronegócio, não há dúvidas de que este será mais um retrocesso.
Outra medida é a Portaria 303 da Advocacia Geral da União (AGU). Nela, as 19 condicionantes utilizadas para aprovação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (RR), seriam colocadas em prática e como modelo. Entre elas estão, por exemplo, a definição de que os direitos indígenas sobre as terras não podem sobrepor os interesses de defesa nacional e nem podem impedir a exploração de “riquezas de cunho estratégico para o país”. Ou seja, oficializam as possibilidades de exploração de recursos naturais pelo capital em terras indígenas. E esta é a arte dos governos petistas: transformar uma aparente vitória dos povos indígenas em uma certeira vitória da burguesia.
A dura realidade dos povos indígenas e a própria habilidade dos governos forçam a fragmentação da crítica diante do confinamento e do genocídio atualmente vivida por diversas etnias. Colocam que, diante da existência de jagunços deve-se combate-los individualmente ou que diante das irregularidades do agronegócio deve-se regularizá-las apenas. No entanto, a responsabilidade diante do confinamento e do genocídio diz respeito à totalidade das violações de direitos cometidas contra os indígenas, intrínsecas ao projeto econômico em curso. Afinal, algo deve explicar o porquê que os governos petistas demarcaram menos terras do que alguns de seus antecessores da direita tradicional.
A criação histórica dessa engrenagem de violações é complexa. Iniciam pela entrega de terras públicas a fazendeiros, pela ocupação desses latifundiários dentro da estruturas de poder político e judicial, pela financeirização dos produtos agrícolas, pela participação de recursos públicos em interesses privados, pela transferência de responsabilidade sobre as terras para os estados e até pelo uso de forças públicas para criminalização dos indígenas. Mas sob cada um desses aspectos, os governos têm sim responsabilidade.
Deve-se reconhecer que as forças mais racistas, latifundiárias, genocidas, que atuam livremente na ponta dessa estrutura, nos vários estados, em conflito direto com os indígenas, permanecem como adversários centrais, até por uma questão de sobrevivência imediata. Mas se trata também de levantar, neste Dia do Índio, as flechas e bordunas contra este governo e seus aliados do agronegócio.
Se estamos à beira de mais retrocessos aos direitos indígenas, como a aprovação da PEC 215, é hora de cobrarmos a demarcação imediata das terras de todos esses povos. E esta é uma decisão que está nas mãos do Governo Federal. Nem as tentativas de tutela por parte da Funai, nem as tentativas de cooptação preparatória para as eleições de 2014, poderão segurar a auto-organização dos povos indígenas até que tenham seus territórios para que possam viver ao seu modo, como indígenas.
Todo apoio à luta e às retomadas dos povos indígenas.
Não à PEC 215.
Demarcação das terras já!
Tribunal Popular: o Estado brasileiro no banco dos réus
19 de abril de 2013
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