Aprendendo a Produzir com a Natureza
por Walter Steenbock e Fabiane Machado Vezzani - Ilustrações de Claudio Leme
APRESENTAÇÃO
Em uma definição ampla,
sistemas agroflorestais (SAFs)
são combinações do elemento
arbóreo com herbáceas e/ou animais, organizados no espaço e/ou no tempo.
A legislação brasileira, em
diferentes instrumentos legais (Brasil, 2009 Brasil, 2011), tem definido
sistemas agroflorestais como “sistemas de uso e ocupação do solo em que
plantas lenhosas perenes são manejadas
em associação com plantas herbáceas, arbustivas, arbóreas, culturas agrícolas forrageiras em uma
mesma unidade de manejo,
de acordo com
arranjo espacial e temporal, com
alta diversidade de espécies e
interações entre estes componentes”.
Quando caracterizados pela alta
diversidade de espécies e pela ocupação vertical de diversos estratos, os
sistemas agroflorestais são comumente chamados, na literatura, de sistemas agroflorestais
multiestrata (Angel-Pérez & Mendoza, 2004; Benjamin et al., 2001;
Caja-Giron & Sinclair, 2001 Staver et al., 2001; Granados, 2005; Silveira,
2005; Holguin et al., 2007).
Muito embora diferentes definições
de sistemas agroflorestais caracterizem estas áreas, grosso modo, como
consórcios entre árvores e culturas agrícolas, é relevante destacar, nestes
sistemas, o cuidado com o manejo da
luminosidade, da produtividade primária, da sucessão natural, da reciclagem
de nutrientes e das relações ecológicas.
Em outras palavras, mais do
que identificar os componentes de uma agrofloresta – árvores, arbustos
e culturas agrícolas –, é importante caracterizar que intervenções ou práticas
de manejo estão por trás dessa estrutura. Mal comparando, pode-se caracterizar
uma praça como um loca que contém brinquedos infantis, como escorregador,
balanço e gangorra. Entretanto, são
as crianças balançando nos balanços,
brincando na areia, rodando com o avô, jogando bola, subindo ou descendo do
escorregador ou andando de bicicleta que fazem a praça.
De forma análoga, caso não
considerarmos os elementos definidores da estrutura agroflorestal, corremos o
risco de manter a mesma lógica produtiva da artificialização de agroecossistemas,
comum na agricultura convencional, para a produção agroflorestal.
Na agrofloresta, não se trata de
artificializar as condições para a germinação e crescimento das espécies de interesse,
mas de potencializar os processos naturais para a otimização da produção, tanto
das espécies de interesse quanto da biodiversidade como um todo. É justamente
nessa diferença de orientação do processo produtivo que a prática agroflorestal
pode contribuir para a sustentabilidade da produção de alimentos.
Para Götsch (1995), “os sistemas
agroflorestais, conduzidos sob o fundamento agroecológico, transcendem qualquer modelo pronto e sugerem sustentabilidade
por partir de conceitos básicos fundamentais, aproveitando os conhecimentos
locais e desenhando sistemas adaptados para o potencial natural do lugar”. A
partir dessa definição, Götsch (1995) propõe que “uma intervenção é sustentável
se o balanço de energia complexificada e devida é positivo, tanto no subsistema
em que essa intervenção foi realizada quanto no sistema inteiro, isto é, no
macrorganismo planeta Terra; sustentabilidade mesmo só
será alcançada quando
tivermos agroecossistemas parecidos
na sua forma, estrutura e dinâmica ao ecossistema natural e original do lugar
da intervenção (...)”.
Esta concepção se mescla ao pensamento
contemporâneo de conservação ambiental, que vem assumindo cada vez mais a
importância do uso sustentável da biodiversidade como paradigma e, neste
paradigma, o envolvimento da dinâmica da biodiversidade associada à dinâmica do
uso humano.
Cada vez mais se concebe a
natureza não como uma imagem estática, na qual a sustentabilidade do uso
represente algo como poder tirar um pedaço pequeno dessa imagem, sem
comprometer sua integridade – o que de fato seria impossível. O uso sustentável
só é possível na prática de contribuição deste uso com os processos naturais,
no rumo crescente da integração, da troca e do aumento de biodiversidade e de
produtividade.
A
concepção geológica, climática,
biogeográfica, evolutiva e
ecologicamente dinâmica da biodiversidade indica que, mais que a preservação das espécies ou comunidades de forma isolada,
o objetivo central da conservação biológica é possibilitar a continuidade dos
processos evolutivos e ecológicos (Pickett & Rozzi, 2000). Richard Primack,
um dos mais expoentes representantes da biologia da conservação atual, em
conjunto com outros colegas, descreve que, se pensarmos metaforicamente que a
vida é como a música e esperarmos que a música
siga vibrando, então não devemos pretender
guardar os instrumentos musicais em vitrines e evitar que sejam tocados por
seres humanos, mas sim devemos estimular que os músicos possam tocar
delicadamente as cordas em um quarteto, reverberar os tambores e respirar com
as lautas, mantendo o movimento musical adequado ao tempo. É com essa
perspectiva que se trará a biodiversidade em nível de genes,
populações, espécies, comunidades
biológicas, ecossistemas e regiões (Rozzi et al., 2001).
Fazer agrofloresta, nesta
metáfora, é perceber e tocar a música. A prática agroflorestal envolve captar e
entender como os processos vitais, os ciclos biogeoquímicos e as relações
ecológicas estão acontecendo, identificando como potencializá-los para o aumento
de fertilidade, produtividade e biodiversidade naquele espaço.
Essa identificação deve recorrer,
sem dúvida, ao uso de conhecimentos acumulados, tanto a partir da prática
acadêmica quanto a partir da prática produtiva – ou seja, ao uso do
conhecimento científico e do saber ecológico local. Mas, essa
identificação envolve também,
com igual importância,
o “perguntar” ao ambiente o que ele está fazendo no rumo do incremento de
fertilidade e biodiversidade. Assim,
fazer agrofloresta consiste
em trazer as ferramentas
do conhecimento para
utilizá-las nos processos
naturais daquele espaço, naquele momento, em um movimento constante e
balanceado entre percepção e prática. Em outras palavras, fazer agrofloresta é manter um
diálogo constante com o ambiente
natural, conversando com seus processos e relações, perguntando o
que é mais adequado ao seu luxo e, ao trazer sua contribuição a este luxo, receber
dele a produção de alimentos. Assim, fazer agrofloresta é, também, educar-se
ambientalmente.
Este livro
traz alguns conceitos de ecologia, discutindo sua aplicação na prática
agroflorestal. Não parte, entretanto, de hipóteses da aplicação desses
conceitos, mas, principalmente, de “trazer ao papel”, ainda que de forma
fragmentada, a aplicabilidade desses conceitos, experienciada, especialmente,
por agricultores familiares associados à Cooperafloresta (Associação de
Agricultores Agroflorestais de Barra do Turvo - SP e Adrianópolis - PR). Há
quase duas décadas, agricultores e
técnicos destes municípios, no Alto Vale do Rio Ribeira,
entre Paraná e São Paulo, vêm produzindo alimentos em
conjunto com o
incremento de fertilidade
e conservação do solo, de biodiversidade, de autonomia e de
segurança alimentar, por meio da agrofloresta. Hoje, nessa
região, mais de uma centena de famílias têm na prática agroflorestal sua opção
de produção e reprodução familiar, demonstrando, assim, esse caminho.
Na primeira parte deste livro, apresentam-se e discutem-se conceitos ecológicos
de forma
contextualizada com a prática
agroflorestal. Na segunda parte,
descreve-se, brevemente, como
as famílias agricultoras
da Cooperafloresta fazem isso. Longe
da pretensão de detalhar profundamente os conceitos, e mais longe ainda da
pretensão de descrever todos os
aspectos relacionados à prática agroflorestal,
pretende-se que este livro possa ajudar
estudantes, agricultores e professores
a utilizarem a agrofloresta como
caminho, ou como música.
Fonte: livro
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