por Gerson
Teixeira (abril de 2012)*
Contribuiu o estudante do curso de Engenharia Agronômica, Danilo Soares (Lamarca) da Unesp - Jaboticabal.
Antes
do presente século, duas anomalias estruturais coexistiram no agrário
brasileiro, entre tantas outras: a brutal concentração da terra e a exclusão,
das políticas públicas, dos segmentos produtivos de origem camponesa.
Desde
o início do presente século, na melhor das hipóteses foi mantido o grau de
concentração da terra. Contudo, a partir do primeiro governo do Presidente
Lula, foi executada política importante de inclusão, nos instrumentos oficiais
de fomento produtivo, de parcela importante do universo de agricultores
familiares e comunidades tradicionais.
A
rigor, essa política deu amplitude e consistência aos ensaios deflagrados pelo
governo FHC com a criação do Pronaf. Desde a origem, o alvo estratégico das
referidas ações converge para o esforço de enquadramento dos agricultores
familiares nos paradigmas de “eficiência produtivista”.
As
estratégias do Banco Mundial para as áreas rurais da América Latina durante a
década de 1990 de hegemonia do pensamento neoliberal exerceram forte influência
nessas definições no Brasil. Sem esquecer que o avanço obervado na ‘reforma
agrária de mercado’, à época, restringem até os dias presentes a efetividade do
instituto da desapropriação punitiva do latifúndio improdutivo.
Essa
direção política para a agricultura familiar adquiriu status estratégico na
gestão de Mangabeira Unger à frente da SAE/PR. Na ocasião, o projeto desenhado
para o futuro do Brasil considerou o fortalecimento do agronegócio como um dos
seus pilares fundamentais. Para tanto, entre outras ações, foi definido o
imperativo de se proceder à “transição” da agricultura familiar. Por suposto,
transição sob a ótica produtivista para o mercado.
Para
dar materialidade a esse ‘projeto modernizante’, sob os paradigmas acima, o
crédito e, associadamente, a assistência técnica, foram, e continuam sendo, os
principais veículos para a replicagem da matriz tecnológica da ‘revolução
verde’ na economia agrícola de base familiar.
Sem
dúvidas, ocorreram diferenças políticas entre os governos FHC e Lula no
processo de exposição dos agricultores familiares ao mercado. Claro que no contexto
de uma economia capitalista, não seria razoável pretender o isolamento da
economia camponesa do mercado.
Mas,
desde uma abordagem que pelo menos tangencie a noção com a qual nos alinhamos
da autonomia relativa dos camponeses, o que implicaria, pelo lado do Estado, em
ações, por exemplo, de proteção desse público ao fenômeno de diferenciação
social preconizado pela teoria marxista, verificamos que:
a) No governo FHC, ainda num estágio do crédito em
pequena escala, por conta não apenas das prioridades políticas de governo, mas
em função, também, das restrições das finanças públicas, mencionada estratégia
visou articular a plenitude do vínculo dos pequenos agricultores com o mercado,
sem contrapesos por parte do Estado;
b)
No período Lula, houve a ampliação significativa dos recursos para o crédito, e
a diversificação dos instrumentos de estímulos produtivos convencionais, o que
acelerou a massificação da estratégia em consideração. Todavia, ao mesmo tempo,
ocorreu o desenvolvimento de mercados institucionais e de instrumentos
especiais de sustentação de preços e renda (extensivos aos produtos do agroextrativismo),
que passaram a funcionar como refúgios ou mitigadores dos impactos do mercado lato
sensu para os segmentos mais fragilizados da agricultura familiar.
Essa
maior cautela do governo Lula com o choque do mercado sobre setores camponeses
mais frágeis expressou a sua maior sensibilidade com as circunstâncias
políticas desses trabalhadores. Contudo, não abalou os propósitos de última
instância do projeto de modernização, qual seja, de junto com a disseminação da
base técnica intensiva em capital e energia, apostar nos efeitos do mercado
como via de seleção dos camponeses habilitados à sobrevivência econômica nesse
ambiente.
No
que concerne aos objetivos do “produtivismo”, ou seja, da generalização e
intensificação do emprego da matriz tecnológica produtivista pela agricultura
familiar, houve plena convergência das ações de ambos os governos. Isto,
exceções de praxe, sem a crítica pelas entidades representativas desses
trabalhadores sobre a qualidade das transformações políticas, em curso,
induzidas pelos bilhões de Reais disponibilizados. Compreensível, pelas
circunstâncias, interessava, e prossegue interessando, os bilhões de Reais do
crédito e o sentimento de ‘conquista’ pelas políticas específicas, finalmente
ofertadas.
Assim,
teve curso o processo de ‘modernização’ da atividade produtiva da grande fração
dos agricultores familiares, ainda não integrados, sob a base tecnológica que
orientou a modernização da grande exploração agrícola a partir dos anos de
1970.
A
qualificação conservadora para esse processo se deve, no mínimo, a duas razões:
(i) ao fato de, a exemplo da estratégia correlata para
a grande exploração, não ter envolvido mudanças na estrutura da posse da terra.
O programa de reforma agrária executado no período recente, sequer reduziu as
áreas de minifúndios. Pelo contrário, a modernização vem ocorrendo com a
ampliação da área desses imóveis que, de 2003 a 2010, passou de 39 milhões de
hectares para 47 milhões de hectares, segundo o Incra. Obviamente, essa faixa
dos camponeses minifundistas é aquela potencialmente mais ameaçada;
(ii)
pela disseminação, no universo da agricultura familiar, da matriz tecnológica
da ‘revolução verde’.
No
que tange a este último ponto, considere-se, em decorrência, o fortalecimento
da inserção da agricultura familiar nos circuitos capitalistas convencionais da
produção e consumo agrícola hegemonizado pelo agronegócio.
Resulta
que o próximo Censo Agropecuário deverá atestar o fenômeno de aceleração do
abandono da prática da diversidade de cultivos e de variedades por parte desse
segmento produtivo, dando espaço para a consolidação da homogeneidade genética
e monoculturas e assim pondo em risco os serviços ambientais inestimáveis
prestados pelos camponeses, como na conservação da biodiversidade.
Dessa
forma, com a modernização da agricultura camponesa pelo nivelamento às
condições da agricultura produtivista, a biodiversidade passa a ser ainda mais
ameaçada, daí restando maiores desafios para a segurança alimentar num cenário
de profundas incertezas com o quadro de mudanças climáticas.
Associadamente,
o crescimento dessa especialização da produção, para o mercado, além de afetar
os atributos do autoconsumo das unidades camponesas, intensifica a ‘adesão’ da
oferta agrícola desses agricultores ao padrão alimentar fordista. Ademais das
perdas biológicas, nutricionais e de qualidade em geral dos produtos de origem
camponesa, equiparando-os aos da agricultura produtivista convencional, esse
processo gera reflexos no comprometimento da produção diferenciada das
culinárias regionais e, subjacente, provoca erosão em costumes e tradições
locais, implicando, pois, em perdas culturais.
Ainda no que tange ao segundo ponto, causa apreensão,
pelas consequências políticas e econômicas, a tendência de subordinação plena
dos agricultores familiares aos oligopólios resultantes da unificação técnica e
econômica dos setores da genética e da química que compõem a indústria
intermediária da agricultura convencional. Da mesma maneira, preocupa a relação
similar com os segmentos da mecanização agrícola convencional que passou a ser
disseminada com o programa ‘Mais Alimentos’, por meio do qual foi levado a cabo
o que avaliamos como o último estágio da modernização da agricultura familiar.
Afora
os desdobramentos na base técnica, os vínculos em questão passaram a aprofundar
a dependência, a fatores exógenos, sob o controle oligopólico, da formação dos
custos da produção camponesa. Tal fenômeno guarda proximidade com o processado
com a modernização do latifúndio que levou à ruptura da dinâmica dos complexos
rurais.
Em
suma, o processo de modernização conservadora da agricultura familiar culmina
com a ampla integração da economia camponesa aos circuitos dos capitais que
controlam o agronegócio. Significa que, a exemplo dos ‘fazendeiros modernos’,
mas sem as mesmas ‘defesas’, os camponeses passam a assumir condição objetiva
de terceirizados desses capitais que operam à montante e à jusante da base
primária da agricultura. Afinal, passaram a ter a estrutura de custos, os
próprios custos e os preços determinados por esses capitais.
Tem-se,
então, a incidência direta sobre os camponeses, da trajetória histórica de
perda de rentabilidade da atividade primária do agronegócio não alterada mesmo
no período recente de boom dos preços para algumas commodities,
conforme temos demonstrado. (Ver a respeito, o artigo ‘O colapso doagronegócio e a agricultura do futuro’, publicado no Jornal Valor
Econômico, em 21/01/2008 e, em maiores detalhes, o estudo A Pesquisa
Científica e os Desafios da Agricultura Brasileira, apresentado no X
Congresso do Sinpaf- 28/04/2011).
Não
é à toa a centralidade assumida pelo tema do endividamento agrícola na agenda
de lutas das entidades dos trabalhadores rurais brasileiros. Isto, praticamente
coincidindo com o início do processo de acesso massivo ao crédito por esses
agricultores. Basicamente, sob o embalo das políticas inclusivas para a modernização,
as pautas das entidades combinam demanda por mais recursos para o crédito e,
concomitante, pedidos de remissões, reduções e prorrogações das dívidas
correspondentes a créditos anteriores. Dessa forma, até a agenda de demandas
políticas da agricultura familiar passou a coincidir com a agenda clássica do
agronegócio. Não por que os camponeses adquiriram a esperteza dos ruralistas
que desde 1995 transformam as permanentes negociações de dívidas na ‘galinha
dos ovos de ouro’ para setores do agronegócio à custa do Tesouro. Mas, porque o
incremento do consumo dos ‘insumos modernos’ nos processos produtivos
camponeses, permitido pelo crédito e orientado pela ATER, implicou em custos de
produção que crescem muito acima dos preços recebidos por esses agricultores.
Para
agravar o quadro acima, a tendência de expansão, entre os produtores de base
familiar, do padrão agrícola fundado na homogeneidade com monoculturas
intensifica os problemas de rentabilidade das atividades desses agricultores,
pelas implicações na gestão dos ‘tempos mortos’ da atividade agrícola.
Ocorre
que, num ambiente de diversidade de cultivos, o ‘tempo morto’ no
desenvolvimento de uma cultura é compensado por outra cultura. Assim, são
minimizadas as implicações econômicas dos tempos biológicos nos prazos de
rotação do capital, o que não ocorre num ambiente de monocultivos.
Em
suma, as principais lideranças dos trabalhadores rurais têm consciência das
encalacradas ora enfrentadas pelos camponeses, bem assim, de que a modernização
conservadora afasta a agricultura familiar de uma posição estratégica na
economia
agrícola do país num futuro mais ou menos próximo a
depender da amplitude e da velocidade da evolução do processo de aquecimento
global.
Nessa
perspectiva, essa opção de modernização, que foi de certa forma inevitável ante
os objetivos mais imediatos da inclusão, além de submeter a agricultura
familiar às mesmas vulnerabilidades econômicas e ambientais da agricultura
produtivista (mas sem as defesas desta), fragiliza o protagonismo desses
trabalhadores na garantia da segurança alimentar.
É
fato que as lideranças desse público transitam numa difícil zona de direção
política. Afinal, entre aproveitar o ambiente institucional favorável para dar
retorno às demandas materiais imediatas das suas bases, ou priorizar as lutas e
demandas compatíveis com o reposicionamento estratégico da agricultura
camponesa, seria difícil descartar a primeira opção. Uma alternativa de
mediação entre as duas opções tem sido igualmente difícil.
De
todo o modo, começa a adquirir densidade em setores do governo o tema da
agroecologia. Tanto que, com a
participação da sociedade civil, ocorrem debates pela formulação de uma
política nacional para esse tema com foco para a agricultura familiar.
A
questão que se coloca é a seguinte: essa iniciativa incluirá reformas
estruturais que gerem políticas para a agricultura camponesa fundadas em uma
matriz tecnológica que possibilite eficiência produtiva, diversidade e baixo
impacto ambiental? É provável que o alcance dessa provável política estará
circunscrito às franjas do sistema agrícola. A absoluta hegemonia do
agronegócio não permite expectativa diversa. Até porque o tema não mobiliza
politicamente os núcleos dirigentes dos Ministérios correspondentes. Tampouco o
tema se inscreve entre as prioridades estratégicas efetivas do Executivo, ainda
que exista sensibilidade para o assunto. Mesmo entre as principais entidades
dos trabalhadores, a agroecologia, incluindo a agricultura orgânica e
correlatas, ainda não foi pautada à altura do seu significado político e,
portanto, não comoveu ao ponto de ensejar mobilizações de massa.
Assim,
os esforços por uma política nacional sobre a temática refletem as ações de
militantes dispersos em várias esferas do governo em sintonia com os anseios de
lideranças de segmentos da sociedade civil.
Não
obstante essas limitações, a eventual política nacional para a agroecologia
oferecerá uma rara oportunidade de luta pela emancipação política da
agricultura camponesa. A depender do grau do engajamento social essa política
poderá evoluir para dimensão compatível com as necessidades do descolamento, do
modelo agrícola convencional, pelo menos de fração da agricultura de base
familiar.
O
certo é que o aprofundamento da modernização conservadora, entre várias
consequências, especificamente representa séria ameaça para a identidade e para
a própria sobrevivência de parcela considerável da agricultura camponesa.
Assim, as agroecologias oferecem uma porta de saída para os camponeses, que
tende a reabilitá-los enquanto classe social e a reposicioná-los produtivamente
num outro modelo de produção e consumo compatível com as exigências da
segurança alimentar.
Portanto,
dependendo dessa luta mudanças estruturais poderão ser viabilizadas para dar
consistência a esse processo.
O
manejo dos instrumentos econômicos para essa finalidade adquire importância
decisiva. Cabe lembrar que essa agenda foi e continua sendo negligenciada pelo MMA a quem caberia a liderança nas tratativas correspondentes dentro do governo.
A
pesquisa permanece como fator altamente limitante. Dentro da Embrapa, nas
condições postas, são remotas as chances de logística, recursos humanos e
financeiros em escala compatível com uma estratégia de pesquisa do gênero, na
dimensão requerida. Mas, fora da Embrapa, também seria difícil. A possibilidade
de criação de
instância em nível de diretoria dentro da empresa para
P&D em agroecologias seria uma alternativa.
Da
mesma forma, os serviços de ATER deverão passar por profundas transformações, e
os mercados institucionais deveriam gradativamente ser redirecionados para
produtos agroecológicos. Nesse particular, as lutas por mais mercados
institucionais com metas progressivas para esses produtos assumem importância
singular.
Mais
desafiador, ainda, será a viabilização da oferta em escala, o que poderá
ocorrer mediante a multiplicação de unidades celulares de produção articuladas
com processos coletivos de comercialização. Um enorme desafio para a
organização desses trabalhadores.
Enfim, os desafios não
são triviais. Mas, pelo menos ainda há desafios!
*Ex-presidente da ABRA
– Associação Brasileira de Reforma Agrária.
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