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"Harmonizo meus pensamentos para criar com a visão". "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível".

quinta-feira, 4 de julho de 2024

Tainahakã

 

 Do livro: Mitos e Lendas Karajá - Inã Son Wéra, João Américo PERET

Na praia a madrugada tangia um friozinho de arrepiar os pelos e espantar o sono. Por isso, Beluá levantou-se, soprou as cinzas e libertou as chamas da fogueira sonolenta. Depois, sentou-se sobre a esteira e pôs-se a cismar:

 - Sou a moça mais cortejada da aldeia, e deveria estar feliz!... Mas não estou. Gostaria de encontrar alguém diferente! Bem diferente!...

 Naquele instante um raio de luz iluminou seu corpo nu e bronzeado, atraindo-lhe a atenção. Ela olhou para o céu e avistou Tainahakã (a Estrela d' Alva) que parecia divertir-se, empurrando a escuridão para espiar o acampamento dos lnã.

Beluá, fascinada com tamanho esplendor, deixou-se invadir por uma irresistível paixão. Em sua imaginação, via o astro como se fosse um poderoso e belo guerreiro que perambulava pela madrugada, em busca de amor e aventura. Naquele instante, ela passou a cortejá-lo:

- Tainahakã, diarã otot-ke hã ãrolákre kai! ... (Estrela d' Alva, estou com a cabeça quente, pensando em você) Manakre uoni teki ueriribó rioré-se! ... (Venha num corpo de belo guerreiro, esposar-me).

Não demorou e seu estranho comportamento passou a ser assunto de mexericos:

- Ora, essa é muito boa! ... Onde já se viu tamanha pretensão? ... Uma simples diadomã (moça) querendo casar com uma estrela! ... Só mesmo estando maluca ... - comentavam.

Dali em diante, a moça passava os dias triste. Não se interessava pelos rapazes, pelas festas, e nem pelos conselhos que lhe dava o cacique, seu pai. E afirmava com convicção inabalável:

- Tainahakã também me ama e conversa comigo todas as madrugadas! ... Até já prometeu que em breve virá buscar-me! ... Todos vocês estão é com inveja! ...

Os dias foram passando, passando. Então, o cacique chamou o pajé e disse:

- Trate a cabeça de minha filha, pois se ela ficar maluca você será o único culpado! ...

O pajé acreditava na estória da moça, já que outras mulheres haviam revelado poderes mágicos. E se ele próprio conversava com as unam teki kati (almas sem roupa, sem corpo), por que outros não poderiam? ... Mesmo assim, ele apanhou sua óbi (varinha mágica) e procurou ajudar, fazendo Beluá dormir um longo sono.

Certa madrugada, com espanto, todos viram Tainahakã aproximar-se da aldeia, e ficaram em pânico, pensando no pior. Mas, à pouca distância, a estrela parou e transformou-se em um Inã. Beluá, que já o esperava, correu ao seu encontro no maior alvoroço e gritando:

- Ele é meu! . . . É meu! Veio casar comigo! . . .

Os Inã recuperaram-se do susto e passaram a saudar o Astro. Algumas jovens, naquele momento, sentiram inveja da moça. O guerreiro do céu foi chegando e pousou na praia. Quando Beluá já se atirava em seus braços, percebeu que Tainahakã era um velhinho bem enrugado. Então, parou, deu meia volta e, cobrindo o rosto com os cabelos para disfarçar a vergonha, afastou-se dizendo:

- Não, não quero casar-me com nenhum velho! ...

Sua atitude indelicada chocou os parentes. Mas, Kuanadiki, sua irmã, apressou-se em corrigir o erro e deu as boas-vindas ao agradável velhinho. Sorriu, pegou em sua mão e levou-o para a tranquilidade da moça, fazendo-lhe as honras de costume.

Passado aquele instante de curiosidade, a aldeia voltou à sua habitual normalidade. Tainahakã, apesar de ser velho, era muito saudável, e todas as madrugadas saía para a floresta, de onde só voltava à tarde, sujo de terra e de mãos vazias.

Depois que ele tomava seu banho, Kuanadiki penteava-lhe os cabelos e servia-lhe uma refeição. Ao pôr do sol, Tainahakã costumava reunir o pessoal, para contar estórias e lhes ensinar coisas interessantes:

- Vocês precisam usar pintura e adornos corporais, que identifiquem a família, a idade das pessoas e sua condição de solteiro ou casado. Também é necessário dividir as atividades entre o homem e a mulher. E construir uma choça para iniciar os rapazinhos nas artes e na cultura.

Certa ocasião formou-se um grande temporal, e era na floresta que ele causava os maiores danos. Kuanadiki estava muito preocupada com seu amigo, e resolveu desobedecer a suas ordens para que não o seguissem. Percorreu a sua trilha, chegando a uma enorme clareira. Ali, solitário, trabalhava um guerreiro que nunca havia visto antes.

- Como é estranho aquele lnã: tem corpo esbelto, é alto, forte e tem a cor bem mais clara que os nossos! O que estará ele fazendo aqui’? ... - pensou.

Naquele instante, atraído por forças mágicas, o guerreiro olhou para trás e a viu. Por um momento, ambos estiveram admirando-se indecisos. Mas ele, com suaves gestos e sorriso meigo, aproximou-se e falou:

- Você não deveria ter vindo! ... Merecia um castigo. ...

- Era o temporal, fiquei com receio e vim procurar o meu amigo, um velhinho ... Você o viu? ...

Tainahakã, com a nova forma de jovem, deu boas gargalhadas e disse:

- Agora, que você me viu como realmente sou, não há mais razão para esconder a minha identidade num corpo velho e cansado, que serviu para pôr à prova o amor de Beluá.

Juntos e de mãos dadas, percorreram a primeira lavoura destinada aos Inã. Tainahakã ensinou-lhe os segredos da agricultura. Depois, falaram em coisas de amor, e voltaram à aldeia.

A tempestade se dissipou e deu passagem ao sol. Este, refletido em cores rubras no espelho do Berohokã (Araguaia, água grande), encrua a natureza de encantamento.

A aldeia agitou-se com a presença do estranho noivo de Kuanadiki. Beluá, arrependida, tentou retomar o seu prometido, mas foi rejeitada.

Muito zangada e frustrada, transformou-se em coruja, e passa as noites namorando as estrelas, à espera de que uma delas venha buscá-la.

Os noivos passavam a maior parte do tempo recolhidos à sua choça, onde os parentes levavam alimentos e os colocavam à entrada, para não perturbar a lua de mel.

Um dia, como os alimentos continuaram do lado de fora da moça, surgiu uma natural curiosidade:

- O que estará ocorrendo com o casal? ... Estarão doentes? ... Terão viajado? ... - eram as indagações.

A mãe da moça várias vezes foi espreitar através das paredes de palha, mas parecia que tudo estava bem. No terceiro dia, ela não se contentou e entrou na choça. Levantou a esteira que cobria o casal e:

- Acudam todos, fomos enganados, o casal sumiu! ... – gritava a mulher.

Em pouco tempo a aldeia estava na maior confusão. Todos procuravam qualquer indício que os levasse ao casal. Mas não havia sequer pegadas; era um mistério completo. As buscas entraram pela noite. E de madrugada, o pajé, muito agitado, exclamou:

- Lá estão eles, foram morar no céu! . . .

Realmente, lá em cima, aparecia Tainahakã acompanhado pela primeira vez por Tainá-ni, uma pequenina estrela, que um dia foi Kuanadiki, a jovem lnã.

  

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