Adilson Paschoal e Ana Maria Primavesi, Lançamento do livro: Pragas, Agrotóxicos e a crise ambiental. Problemas e Soluções. |
(Homenagem que presto por ocasião do trigésimo dia de
seu falecimento)
Adilson D. Paschoal
Professor Sênior da Esalq-USP
Conhecer as propriedades físicas, químicas
e biológicas dos solos é a meta dos edafologistas. A complexidade do assunto e
os requisitos didáticos levaram às especializações, surgindo especialistas em
física do solo, em química do solo e em microbiologia do solo. Como
consequência, o entendimento desse importante recurso natural como um todo,
único, indiviso, acabou prejudicado. A compreensão das múltiplas interações
ocorrentes entre os três componentes edáficos, a maneira como um interfere no
outro, e o emprego dos conhecimentos advindos dessas inter-relações para o
manejo e a conservação corretos do solo, visando boas colheitas sem destruir
suas propriedades e desequilibrar negativamente a bioquímica das plantas, é
assunto complexo demais para ser do entendimento reducionista, típico dos
profissionais especializados. Nesse sentido, os edafologistas de formação ecológica
conseguem obter melhores resultados práticos. Da mesma forma que não se pode
deduzir as propriedades da água (que é um líquido, H2O) com base nas
propriedades dos elementos que a formam (o hidrogênio e o oxigênio), que são
gases, também não se pode inferir as propriedades do solo pela simples análise
de seus componentes isolados. O ecologista sabe que o todo é muito mais do que
a simples soma de suas partes, tendo características próprias, que precisam ser
entendidas. Por isso ele trabalha com sistemas, que no caso da agricultura é o
agroecossitema.
Dentro da visão holística, a engenheira
agrônoma Dra. Ana Maria Primavesi pautou toda a sua vida. Formada na Áustria,
seu berço natal, veio para o Brasil logo depois da II Guerra Mundial. No Rio
Grande do Sul, na Universidade Federal de Santa Maria, desenvolveu, com seu
marido Arthur Primavesi, um dos mais importantes trabalhos sobre a biota do
solo, de tal profundidade e pioneirismo, a ponto de surpreender até os
cientistas europeus que prefaciaram o livro, por título: “A biocenose do solo
na produção vegetal” (1964), análise holística fundamentada nas relações
planta-solo-microrganismos, em que demonstram haver relação entre a vida no
solo e a produção vegetal. O solo é entidade viva e não mero suporte físico
para as plantas. Um ano depois, lançam novo livro: “Deficiências minerais em
culturas. Nutrição e produção vegetal” (1965), onde comprovam “não haver doença
vegetal sem prévia determinada deficiência vegetal”.
A vida da professora Ana M. Primavesi está
perfeitamente documentada em memorável trabalho escrito por Virginia M.
Knabber. Quero aqui relatar apenas como vim a conhecer esta notável cientista,
com quem convivi por quase quarenta anos, sempre divulgando, com ela, por todos
os estados deste país, as ideias de uma nova agricultura, de base ecológica.
O ano era 1980. Visitando um colega no
Departamento de Solos e Geologia da Esalq, o que habitualmente eu fazia para
atualizar meus conhecimentos, com profissionais do mais alto nível, notei sobre
a mesa de sua sala um grosso volume, cujo título me chamou a atenção: “Manejo
ecológico do solo”.
—
Conhece o livro? perguntou-me ele.
—
Não! respondi.
—
E a autora?
Achegando-me mais próximo do livro pude
ler: Primavesi. E logo abaixo do nome: “A agricultura em regiões tropicais”.
—
Não conheço, foi minha resposta.
Perguntei, pois estou fazendo a resenha do
livro... e encontrei vários problemas — afirmou-me ele.
Deixei o prédio do Departamento com a
forte convicção de que algo de novo havia na Edafologia de que eu ainda não
tinha conhecimento; era importante que eu conhecesse, pois Ecologia e
Conservação dos Recursos Naturais (que depois se chamou Agroecologia e
Agricultura Orgânica) era o que eu estava ensinando para meus alunos da Esalq
desde 1977. Ora, raciocinei, se ele como adepto que é da agricultura industrial
encontrou “problemas” no livro é porque carece de conhecimentos ecológicos.
Conseguintemente, o livro deve ser bom. No
mesmo dia fui à biblioteca da escola e encomendei três exemplares, prontamente
adquiridos pela instituição. Foi quando conheci a obra em toda a sua
profundidade, quebrando velhos paradigmas, lançando conhecimentos e técnicas
ainda pouco conhecidos, alguns totalmente novos. Um fato, entretanto,
intrigou-me: a autora não falava de compostagem. Descobri, depois, que a escola
que seguia era aquela dos países de língua germânica, onde compostagem se faz
sobre o solo, da mesma forma que a natureza faz, e não em pilhas, como
artificialmente se descobriu e se ensinava na Inglaterra e na Esalq. Para
mim, que sempre defendi o húmus como elemento primordial para a fertilidade do
solo, sua boa estruturação e fornecimento de nutrientes para as plantas,
constituiu surpresa a afirmação de que isso só ocorria quando o húmus se
formava em condições favoráveis de pH, o que de fato constatei depois.
Professora Primavesi, em raro momento na Esalq, onde participava de evento de agricultura orgânica, em 1999. Acervo Denise P. D. Paschoal. |
Conheci a Profa. Primavesi quando ela já
estava aposentada, residindo em São Paulo com os filhos. Em todos os eventos de
agricultura alternativa, como se chamava na época a agricultura orgânica, lá estávamos
nós a proferir palestras, conferências, seminários, por todos os cantos deste
imenso país. As pesquisas que passamos a fazer para a Fundação “Mokiti Okada”,
de agricultura natural, levou-nos a viajar por vários países da América do Sul,
da Europa, da Ásia e da África, onde os resultados de nossos trabalhos foram
apresentados e publicados. Sempre rodeada por estudantes, toda a vez que me via
chegar dizia, esboçando o sorriso sincero que sempre caracterizou seu espírito
elevado: “Professor...!”
Mas o tempo passa e tudo muda. Sem vê-la
por muitos anos, mas nunca deixando de saber como estava, uma cerimônia, a do
lançamento de um meu livro, fez-nos rever um ao outro, porém de uma maneira que
pela comoção e desfecho que teve pouco tempo depois deixou-me impossibilitado
de escrever antes o presente texto. Aos 99 anos de idade, não participando mais
de nenhum evento, aceitou, com muita alegria, como me disse a filha Carin, vir
ao lançamento do livro. Com os braços abertos para mim, e seguramente dizendo baixinho:
“Professor...!”, reencontramo-nos enfim. Sob aplausos acalorados, que não
cessavam, acheguei-me a ela e sussurrando-lhe no ouvido disse: Veja, Ana,
quantos seguidores nós deixamos!
Nada respondeu. Apenas sorriu.
A mãe está na luz! Disse Carin, ao
anunciar para minha esposa a perda do ente querido. Estar na luz significa
estar com Deus, local dos bons, do justos, dos abnegados, daqueles que viveram
para pregar o certo, o bem, o útil, ensinando com convicção as suas ideias,
conseguidas em muitos anos de estudos, criando um mundo novo e sólido para
milhares de pessoas, sem nada almejar em troco a não ser a confiança, o
respeito, o carinho e a amizade de tantos outros, que lhe seguiram o caminho e
lhe imitaram o saber.
Encerro esta singela homenagem à colega e
amiga Primavesi, repetindo Camões:
“O sábio não vai todo à
sepultura
No
coração dos homens vive e dura”.
Requiescat in pace Ana Primavesi.
Piracicaba, 5 de fevereiro de 2020.
Fonte: Texto
para leitura e apreciação, recebido do professor e amigo João Ieda da Esalq
por emeio... abraços
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