Por Sebastião Pinheiro
A Quaresma é a comemoração mais religiosa do cristianismo e dos pobres “marranos” convertidos (os ricos tiveram suas vidas confiscadas pela apropriação de suas bens) sobreviventes da Inquisição como “novos cristãos”. Essa é a segunda Quaresma seguida em situação anômala pela epidemia mundial. Mas, a primeira não pôde ser notada, no meu caso um viúvo, sozinho, que recém se recuperava do SARS Cov-2.
No entanto, agora com 4 mil mortos por dia e 335 mil desde o seu início. É difícil ter tranquilidade pelos milhares de amigos mortos ou severamente afetados quando o cientista afirma que as mortes chegarão a 5.000/dia. O presidente da república é o maior responsável por isso, mas acredita que está protegido pela lei, pela ordem e pelas armas e até muito recentemente como cães de caça trumpistas.
Páscoa é ressurreição e uma boa oportunidade de reflexão e a solidão me levou às lembranças da infância de coisas que estavam guardadas por superação, vergonha, ignorância ou falta de tempo para fazê-las, que agora é abundante devido à idade e a perspicácia sobre a vida.
Sim, era uma outra época. A gente não sabia o que era a preocupação com o "clima", não conheciam os "agrotóxicos", e o câncer era tão raro e afetava os muito idosos que ninguém o notava como anormal e se acreditava que a morte era pelas mãos de Deus. Ainda mais do que os assassinatos eram comuns, mas não epidêmicos e espetaculares como os patrocínios televisionados hoje no horário nobre.
Na minha infância, a Quaresma era um período em que não havia ovos de galinha, devido à mudança de penas. Tínhamos 30 patas e eu estava ganhando um bom dinheiro, pois os ovos de pata que ninguém queria antes, eram então procurados devido à escassez para fazer as famosas “rabanadas” fritas as tortas.
Criávamos de três a cinco porcos com restos de comida e cáscaras (lavagem) coletadas na comunidade, que também era meu trabalho pelo menos cinco vezes ao dia e porque eu era o único que sabia escrever e fazia a contabilidade para distribuir as partes requeridas e devidas aos parceiros.
Em casa a cara carne de vaca entrava só duas ou três vezes por ano e isso não preocupava, já que não era permitida no “Domingo de Ramos”, e o alimento da quaresma era preparado em casa com bastante antecedência e não era comprado, era pescado e salgado, porque muitas vezes o fresco não era encontrado e a organização impunha as tarefas.
A pesca era na Lagoa de Boassú até nos manguezais da Praia da Luz onde havia muitas cobras e mosquitos. Procurávamos grandes bagres para salgar, alguns camarões e os raros robalos. Essa pesca começou depois do carnaval e tínhamos 40 dias para garantir comida para mais de 60 pessoas, com alguns vizinhos que não tinham braços para pescar e nem dinheiro para comprá-los e fazia parte da troca para a lavagem dos nossos porcos. A celebração durou quatro dias. Os bagres eram salgados com o fim do verão, período quente, mas muita chuva que obrigou a cuidar, ainda mais pelos os gatos e os ratos. O bagre salgado com mais ou menos um quilo chama-se "mulato velho" (foto) e passa a ser o "bacalhau do pobre" depois de retirado o sal e cozido com banana verde e coco ralado. Eu ficava encarregado de procurar cachos de banana nos riachos, escondendo-os para a colheita na hora certa. Fiz um trato com famílias afrodescendentes que tinham muitas bananas e trocavam cachos por velhos mulatos salgados e fazia o mesmo com laranjas azedas ...
Mais tarde na Patagônia conheci a truta e o bagre tinha a mesma cor do salmão e o sabor não era tão diferente, mas exótico. Depois comíamos a sobremesa que era a mazamorra (mingau) feita com milho branco, leite de coco e leite de cabra. O auge foi o doce de casca de laranja azeda, que junto com minha avó conseguíamos descascar mais de três saquinhos e demorou mais de uma semana para tirar o amargor depois de cozido na troca da água. Ninguém imagina, mas toda a minha experiência na faculdade nas oito Químicas que estudei começou lá na minha Quaresma e nunca pensei nisso antes.
É muito raro eu falar de transição agroecológica, como muitos militantes, e isso se deve aos conhecimentos que adquiri com minha avó e depois relembrados nas aulas, tanto em Lowry-Bronted com ácido-base; Fisiologia, Fitoquímica, Física de Rutherford e Linus Pauling; como em Davi Ricardo, Chayanov, Marx, S. Mills, Darwin, Haeckel, Margaleff, Vernadsky. Ao estudar pude colocar em prática o que havia feito em casa e compreender algo que para muitos era abstrato e aprofundaria minhas responsabilidades.
A maior alegria de todos aqueles tempos foi entregar
dois velhos mulatos já dessalinizados e três mãos de bananas para o almoço da Sexta-Feira
Santa a Dona Salvina, uma africana muito humilde xamã nossa vizinha, e receber
a sua bênção, com sete golpes de cipó de Guiné cortado naquela manhã e que
nunca mais secaria, pois sempre foi verde. Ela me deu três pedaços de sua fruta
que não podiam mais ser comidas, pois queimava minha boca e garganta, mas
imunizava contra os espíritos malignos. Era uma Annona nativa, que hoje eu conheço,
é o Ariticum acutipholium (foto).
Nas igrejas os santos eram cobertos por panos roxos e as crianças se preparavam para a primeira comunhão...
Raramente víamos dinheiro, e muitas vezes as moedas eram as muito antigas de mil réis, a moeda que havia desaparecido em 1942, mas ainda circulava na periferia. As passagens eram o Barão de Tamandaré por 1 cruzeiro; A bela nota de 2 cruzeiros com o Duque de Caxias e um verde de 10 cruzeiros com a cara do ditador por vinte anos. Estávamos a 30 km do Rio de Janeiro, mas era tão longe que demorava três horas para chegar, mas lá não era para os pobres e hoje, estranhamente, é muito mais longe.
A Páscoa é um momento de reflexão e de regresso à infância. O culto religioso arrecadatório nos templos exigidos pelo governo. O menino Henry me lembrou das torturas de mães obesas encapuzadas sobre seus bebês e água quente escorrendo como sangue de criança... Picasso nos deu Guernica e aquele na Coreia, bom para resistir a governos supremacistas, que é possível que perseguir e mude o nome para "velho mulato", mas não conseguirá mudar o seu gosto e nem a sua memória. Inché Marichwew
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