"O combate à pobreza é básico e depende da recuperação ambiental e da Agroecologia"
Leandro Brixius, Jornalista da Emater/RS
Entrevista: Ana Maria Primavesi
Praticar a agricultura ecológica, como vem defendendo durante décadas, e continuar espalhando o conhecimento sobre a necessidade de compatibilizar agricultura com preservação ambiental são, atualmente, as principais ocupações da professora e pesquisadora Ana Maria Primavesi. Nascida em 1920, na Áustria, Ana Maria fala, desde a década de 40, em agricultura ecológica e, principalmente, sobre solos, como evidencia seu livro Manejo Ecológico do Solo, obra de referência sobre o tema em diversas universidades latino-americanas e européias. Hoje, além de pequena agricultora em Itaí, no interior de São Paulo, é pesquisadora da Fundação Mokiti Okada e realiza palestras em diversos países.
"Estou plantando minha terrinha, trabalho no conselho científico da fundação e, de resto, estou andando por toda a América Latina dando cursos", contou Ana Maria Primavesi nesta entrevista à Agroecologia e Desenvolvimento Rural Sustentável, realizada durante sua participação como palestrante no III Seminário Internacional sobre Agroecologia, realizado em setembro, em Porto Alegre. Além disso, fala sobre a diferença entre agricultura ecológica e orgânica, transgênicos, reforma agrária e, é claro, manejo do solo.
Revista - A Sra. começou a falar em agricultura ecológica já na década de 40, numa época em que não se falava em cuidados com a preservação do meio ambiente. Como foi esse início?
Ana Maria - Eu ainda vivia numa época em que a agricultura química praticamente não existia. A gente sabia que existiam os adubos químicos, pois as pessoas, em 1942, 1943, já reclamavam dos efeitos, não queriam mais comer os produtos com adubos químicos porque não tinham gosto. Os alimentos eram muito bonitos, mas não tinham sabor.
As firmas, nessa época, diziam que era imaginação das pessoas. Quem queria botava, quem não queria, não botava. Nos anos 60, começou a campanha da Revolução Verde, que aconteceu quando as firmas americanas estavam indo à falência e precisaram procurar desesperadamente uma solução. Então o mister Borlaug (Norman Borlaug, um dos precursores da Revolução Verde), disse que a solução era justamente abrir a agricultura para a indústria química e mecânica. Então, eles obrigaram as pessoas a fazer monocultura. No Brasil, não existia monocultura, a não ser de cana-de-açúcar. Com a monocultura, começaram os problemas das doenças e era preciso colocar veneno. Uma avalanche em que um arrastava o outro. O adubo químico, basicamente, é formado por três elementos e a planta necessita de 45. Aí está o grande problema. Com esses três elementos, a planta está mal nutrida, subalimentada. Com isso, começaram todas as doenças e o decorrente uso dos pesticidas. Como cada pesticida está baseado em algum mineral, induzia a uma deficiência de minerais que estavam em proporção com esse e então foi uma avalanche cada vez pior.
Revista - O que é o manejo ecológico do solo?
Ana Maria - No manejo ecológico do solo, você tem que ter duas coisas: não virar a terra mais profundamente do que ela suporta (15 centímetros) e colocar a matéria orgânica sempre na parte superficial para ter uma decomposição aeróbica. Com isso, você melhora o solo incrivelmente. Na Argentina, há dez anos trabalha-se com agricultura orgânica. Eles enterram a matéria orgânica até 40 centímetros e a terra está dura. Por quê? Porque esse negócio não dá certo. Primeiro, eles destroem a estrutura do solo, a terra se assenta, não tem poros, não cria nada, nem fixa nitrogênio. Então, é um fracasso total. E ainda custa caro!
Revista - Como a Sra. vê, atualmente, o manejo dos solos?
Ana Maria - No momento, está completamente errado, pois pega-se o manejo utilizado pelos americanos e aplica-se aqui no Brasil. Por exemplo, o potássio. Abaixo de 15ºC, o potássio não é absorvido. Cálcio, com terra fria, é cinco vezes menos absorvido que em terra quente. Então, eles (os agricultores americanos) necessitam um solo super rico para a planta absorver alguma coisa. Para nós, não. Então, eles mantêm o solo limpo com herbicida e capina para captar calor, porque o máximo que o solo consegue captar é 14ºC. Aqui não, aqui vai mais. Eu medi 74ºC, e um professor que trabalha na África mediu 83ºC. Então, há uma diferencinha. E, a partir de 32ºC, a planta já não absorve mais. Água quente ela não absorve. E nosso problema é que a matéria orgânica que é colocada tem que servir à planta e não à máquina que estão importando.
Revista - Por que as remoções profundas não são indicadas para os solos tropicais?
Ana Maria - Nos trópicos, 80% dos microorganismos encontrados no solo são fungos, que produzem enorme quantidade de antibióticos e têm sua vida inibida abaixo de 15 centímetros. Antigamente, quando trabalhavam com aradinho de boi ou de burro, a lavração não ia abaixo de 12 ou 15 centímetros e a terra se mantinha mais ou menos na parte superficial. Agora, com arado de tração mecânica, pode-se entrar de 30 a 40 centímetros, virar a parte morta para cima, que é desmanchada pela chuva, entra solo e entope os poros. E aí a terra fica dura, compactada. Todos me perguntam o que fazer contra a compactação. No trópico não se pode fazer aração profunda de jeito nenhum. Tem que ser rasa porque a terra abaixo está morta. Na América do Norte não, lá a terra está viva até abaixo de 30 centímetros. Nos Estados Unidos ainda há agregação por congelação, que não existe aqui.
Revista - O plantio direto é colocado, muitas vezes, como uma solução para o manejo dos solos. Qual a sua opinião?
Ana Maria - Plantio direto tem vantagens e desvantagens. E a grande vantagem, que vi na única região que conheço onde o plantio direto é 100% certo, os campos gerais do Paraná, os produtores conseguem uma camada de seis ou sete centímetros de palha acima do solo. Nas outras regiões, onde plantam monoculturas de soja, eles têm no máximo 1,5 centímetros, o suficiente para proteger o solo contra a erosão. É uma grande vantagem. Do outro lado, a pressão da máquina é horrível. No plantio direto, a máquina é até cinco vezes mais pesada que a de plantio normal e, então, a compactação é violenta.
O segundo problema é que, no plantio direto, a rotação de culturas é necessária, pois do contrário aumentam as pragas. E não só aumentam, mas elas mudam também. Praga das folhas passa a ser praga da raiz. Então há uma enorme quantidade de pragas que agora atacam a raiz. Se eu sei a deficiência que há não tem problema, eu vou colocar nutriente e a praga desaparece. Se eu não sei, o combate é muito complicado, porque com veneno não se atinge. Então, o que fazem? Colocam o veneno já na linha de plantio. Então, a planta está muito mais venenosa que com o cultivo normal.
Revista - Lutzenberger falava em agricultura regenerativa. Outros falam em agricultura orgânica. A Sra. refere-se a agricultura ecológica. A Sra. poderia abordar essa escolha e relacionar as diferenças entre agricultura ecológica e orgânica?
Ana Maria - É completamente diferente. Na orgânica, você trabalha pelas normas e as normas não fazem nada mais do que trocar um agente químico por um orgânico. Em lugar de, por exemplo, pegar adubo químico, você usa agora composto e, obrigatoriamente, faz composto. Em lugar de algum defensivo químico você usa um caldinho. Mas os caldinhos também podem ser tóxicos, também podem ter efeitos colaterais. Sempre há minerais dentro. Eu não posso usar todos os dias. Então, o grande erro da agricultura orgânica é que, primeiro, continua com toda a visão factorial, fator por fator, continua combatendo em lugar de evitar. No final, a melhora que se consegue é muito pouca. Se produz mal porque não se sabe onde colocar a matéria orgânica, a produção, normalmente, é miserável. Então, eu não vejo muita vantagem com esse tipo de agricultura. A não ser que é muito mais trabalhoso e o agricultor é muito mais sacrificado.
Agora, na ecológica, eu vejo o inteiro. Então, eu vejo porque apareceu o sintoma. Eu não digo só “ah, tem um sintoma aqui, vamos combater”. Não, pergunto primeiro o por quê? Em minha propriedade, eu plantei milho e houve infestação da lagarta-do-cartucho. A lagarta-do-cartucho é muito difícil de combater porque, se não tem aviação agrícola, não é possível pulverizar com bomba normal, já que o defensivo tem que entrar por cima. Mas eu não pergunto como combater essa lagarta, mas por que apareceu essa lagarta. E a lagarta só ataca porque o milho está deficiente em boro, então eu coloco cinco, no máximo oito quilos de bórax por hectare e pronto. Não tem lagarta-docartucho porque quando tem boro, não aparece mais, não consegue comer o broto.
Revista - Quais são os desafios que se enfrenta hoje para alcançar uma agricultura socialmente justa e ecologicamente correta?
Ana Maria - Primeiro, nós precisamos de fato uma reforma agrária, mas não uma reforma agrária como está sendo feita hoje. Por exemplo, no Paraguai, é dada a melhor terra para o assentado e não a pior. Aqui no Brasil, é só terra marginal. E segundo, eu não posso simplesmente assentar qualquer pessoa. Reforma agrária no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina funciona, porque são assentados ex-agricultores. Mas, se eles já per deram uma vez sua terra, vão perder outra vez, porque a tecnologia que eles têm não presta. Então, eu teria que ter uma assistência técnica muito boa para mostrar como fazer para não perder novamente a terra. O terceiro ponto é que eu não posso simplesmente assentar como eles fizeram na Bolívia, onde retalharam a terra e cada um recebe meio hectare. Meio hectare não dá para uma família viver normalmente. Então, já não é reforma agrária, é criação de miséria. No Nordeste, por exemplo, o governo dá um pedaço de terra e uma cabra. É muito bom, não?! Mas a cabra acaba com tudo, não deixa mais nada e forma deserto. Não é uma solução! O que ocorre com o homem que tem uma cabra? Ele pega sua terra e planta. Mas ele já tem um nível de pobreza em que não produz mais, só quer comer. Está tão faminto que não pensa mais em produzir, só em comer. Além disso, o agricultor realiza queimadas cinco vezes por ano. A terra, depois de cada queimada, está pior, mais dura, menos produtiva. No fim, crescem só umas coisinhas duras, que nem sustentam a cabra. Então, pela miséria aumenta a pobreza e pela pobreza aumenta a miséria. Por exemplo, o governo dá uma cesta básica de alimentos para os pobres. Mas isso não é solução, porque o homem, com isso, fica degradado de pobre para mendigo. Ele não era mendigo antes, ele quer trabalhar. O governo não sabe o que fazer porque não quer contrariar os ricos que tem lá na região. Por isso, acha mais fácil dar uma cesta básica para cada um e não entrar mais profundamente no problema. Tem que ver que a pobreza não se combate com esmola! Eu tenho que ensinar o povo a trabalhar sua terra, mas ele tem que ter a possibilidade de fazer isso. Não posso simplesmente comprar cinco mil cabras e soltar pelo Nordeste.
Revista - É possível obter maior produtividade e também preservar o meio ambiente?
Ana Maria - Se você não preserva o meio ambiente, a produção sempre vai ser baixa. Nós temos uma série de dados que mostram que, em uma região descampada, mas com suficiente chuva ou irrigação, a colheita baixa até a metade do que poderia ser normalmente somente pela ação do vento. Em uma época de seca, a colheita pode ser reduzida em até cinco vezes. Isso quer dizer que, se há metade da área florestada é possível colher idêntica quantidade que é colhida hoje no dobro da área que sofre com a ação dos ventos. Então, quando dizem que não pode ter Agroecologia, não pode fazer recuperação do ambiente, porque precisam de toda a área para plantar, tudo bem, mas colhem tanto menos que não resolve o caso. E afora isso, pode-se implantar, nesse mato, árvores que produzam. Por exemplo, se tiram toda a Mata Amazônica para plantar soja e depois colher uma miséria, poderiam enriquecer o mato com cajueiro, castanheiro e outras plantas. Um estudo do governo do Acre constatou que enriquecer a mata dá 13 vezes mais lucro do que transformar em pastagens ou lavouras de soja. Então, por que não fazem? Porque os americanos querem vender as porcarias deles.
Revista - Qual sua opinião sobre a concessão de subsídios públicos para a agricultura?
Ana Maria - Antigamente, a agricultura financiava a indústria e mantinha o Estado. Ela funcionava. Hoje, a agricultura depende de créditos e está sempre endividada e quase quebrando. Então, talvez a agricultura precise do recurso público para se recuperar, porque ela está completamente estragada pela tão famosa Revolução Verde. Mas, através da Agroecologia pode-se produzir tanto que a agricultura pode ser forte de novo. Eu não quero explorar, eu quero colocar a agricultura saudável de novo na região! Sem a recuperação do meio ambiente a agricultura não funciona bem. Sem recuperar o meio ambiente e sem agricultura você não vai combater a pobreza e outra vez a pobreza destrói. Você não pode dizer: “para mim não interessa, porque eu vou ter o suficiente para comer”. Se não tem água, ninguém come. Você não pode comer seu dinheiro. Sem água não tem o que beber e nada para plantar e então acaba tudo. Então o combate à pobreza é básico e tem que ser feito ao mesmo tempo que você faz a recuperação do ambiente e uma agricultura baseada na Agroecologia.
Agroecol. e Desenvol. Rur. Sustent. Porto Alegre, v.3, n.4, out/dez 2002