O Plano Nacional de Agroecologia é um marco dos movimentos para a restruturação da política de produção de alimentos. E uma oportunidade para a sociedade escolher de que se alimenta
Por Bruna Bernacchio
Mais de um ano depois de intenso trabalho conjunto do governo e organizações do campo, foi lançado em 17 de outubro o
Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, que apresenta medidas concretas a serem implementadas até o fim de 2015. O investimento, de R$ 8,8 bilhões nos próximos três anos, é inédito na produção agroecológica brasileira. Ainda não representa nem um décimo do subsídio dado pelo governo federal ao agronegócio, mas é um primeiro passo para fortalecer a agroecologia e permitir que a sociedade reflita a respeito da autonomia alimentar.
Desde o lançamento das
diretrizes políticas instituídas no decreto nº 7.794, de agosto de 2012, coube à Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Cnapo) – formada, metade por representantes da sociedade organizada e metade por órgãos públicos –, a tarefa de dialogar com 14 ministérios, representados na Câmara Interministerial de Agroecologia e Produção Orgânica (Ciapo). Um ano depois, são lançadas a público as 125 iniciativas do
Plano, a serem iniciadas ainda em 2013, e atingidas até o final de 2015. Estão distribuídas em quatorze metas e organizadas a partir de quatro eixos estratégicos: a) produção, b) uso e conservação de recursos naturais, c) conhecimento, e d) comercialização e consumo.
Para a agroecologia, que sempre existiu como prática mas que já há um século consolidou-se como conhecimento científico – sem nunca ter apoio do Estado –, os recursos de R$ 8,8 bilhões são inéditos.
Desses, 7 bilhões em forma de crédito rural, em modalidades de custeio e investimento. R$2,5 bilhões para financiar pequenos sistemas de base agroecológica, através do já existente Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), que no próximo ano, conforme
Plano Safra 2013/2014, terá recurso total de R$ 39 bilhões. Isso significa que, de todo o subsídio para agricultura familiar, 5% passarão a ser reservados para agricultura familiar orgânica. E R$ 4,5 bilhões disponibilizados por meio das linhas de crédito do Plano Agrícola e Pecuário, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), e portanto não exclusivos para agricultura familiar, mas também para grandes produtores. Terão como objetivo estimular a conversão para sistemas agroecológicos e sua ampliação. A transição é definida no conceito normativo da agroecologia, e, uma vez completa, deverá seguir as normas de certificação.
Somente 10 mil agricultores possuem certificado de produção com base agroecológica, hoje, no país – segundo dados do Plano. A meta é chegar aos 50 mil certificados, o que inclui mecanismos de visita e avaliação de garantia de qualidade. Mas esse número se refere somente à certificação de auditoria, explica Dênis Monteiro, da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA). Além dele, existem a certificação por Sistema Participativo de Garantia (SPG) e a partir de organismo de controle social – estabelecido em casos de venda direta, ou seja, feiras, mercados locais ou por Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).
Pelo
Censo Agropecuário do IBGE de 2006, cerca de 90 mil produtores – entre familiares e industriais – se autodeclaram orgânicos, ou seja, não utilizam em sua produção agrotóxicos ou nenhum tipo de insumo químico ou geneticamente modificado. Isso não significa, porém, que se baseiam na agroecologia. A grande maioria ainda desenvolve o sistema tradicional de produção – realizando queimas do solo ou monoculturas, por exemplo –, mas, com os créditos e aperfeiçoamento técnico que o Plano pretende oferecer, pode realizar a transição para o sistema agroecológico facilmente.
Se comparado aos
R$ 138 bilhões de recursos ao agronegócio, definidos pelo Plano Safra 2013/2014, os R$ 8,8 bilhões para a agroecologia são quase insignificantes. Ainda assim, trata-se de mudança importante que começa a ser inserida no crédito do Mapa e do Pronaf. Além dos recursos em crédito, os R$1,8 bilhões restantes terão diversos destinos.
Indiretamente, ainda para produção, R$805 milhões, vindos do BNDES, servirão para apoiar 30 redes, 250 projetos e 100 cooperativas voltadas à articulação e ao fortalecimento da produção, processamento, certificação, e comercialização de produtos. Tal recurso leva em conta uma característica essencial do movimento de formação e expansão da agroecologia: a ação em rede. A troca de saberes, técnicas e insumos é a base das relações entre os agricultores. São centenas de organizações e associações municipais e estaduais que atuam como agregadoras. Vale ressaltar que, dos R$ 805 milhões, 30% dos projetos devem ser para mulheres.
A especificação de gênero também está presente em edital da Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater), que vai atender 75 mil pessoas, sendo 50% mulheres. Além da ampliação e enfoque dado ao Ater, o eixo “conhecimento” prevê uma série de medidas para apoiar e fortalecer a área nas instituições de ensino. Vai apoiar projetos que incentivem a produção de conhecimento e inovação tecnológica e que integrem atividades de pesquisa, educação e extensão para a construção e socialização de conhecimentos e práticas relacionadas. Vai também realizar oficinas externas para fortalecer a rede de agroecologia e incorporar o tema nas demais redes; apoiar publicações, implementar novos núcleos de pesquisa; e outras medidas, entre elas, algumas específicas para estimular a autonomia da juventude.
O eixo “uso e conservação de recursos naturais” tem duas grandes frentes de ação. A primeira vai destinar mais de R$ 168 milhões em 14 medidas para a diversidade das sementes criolas – produção, manejo, conservação, aquisição, distribuição, mapeamento de espécies, apoio a organizações, trabalhos de educação ambiental, e compra das sementes pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) – que, também pelo Plano, vai adquirir produtos já prontos para consumo.
A valorização das sementes livres resiste como movimentos independentes no mundo todo. Vinda do Estado, é um recurso surpreendente e muito bem-vindo. A segunda frente desse eixo “uso e conservação de recursos naturais”, bastante tímida, leva em conta o respeito à preservação e o uso sustentável dos territórios, mas, com apoios que se limitam a passos iniciais, de estudos, pesquisas, diagnósticos e mapeamentos.
Por fim, para “comercialização e consumo”, estão previstas 13 medidas, entre elas a disponibilização de R$ 23 milhões para promover a participação de agricultores familiares, assentados, comunidades e povos tradicionais em feiras – sem definir quantidade ou territórios. Também torna política nacional a aquisição de produtos da agricultura familiar pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), numa proporção ainda tímida de 30%. Quanto à esperada popularização e ampliação de orgânicos nos mercados “comuns”, uma única medida vai “qualificar a gestão de 150 Organizações Econômicas Familiares (OEF) de agricultores agroecológicos e orgânicos”, ampliando o acesso dos produtores a esses locais.
Além dessas e outras metas que apoiam o fortalecimento da agricultura orgânica está uma, única, que indica o início do combate ao agronegócio: “criar um programa nacional para a redução do uso de agrotóxicos”. Terá recurso total de pouco mais de R$23 milhões, para a realização de sete medidas, entre elas: desenvolver um Programa Nacional para Redução do Uso de Agrotóxico satravés de grupos de trabalho; revisar a legislação ampliando os mecanismos de controle, considerando o grau de risco dos produtos utilizados atualmente; listar agrotóxicos prioritários a terem suas autorizações de uso no Brasil reavaliadas, lista essa “que passará a ser referência para definição de priorização de pesquisas e agilização de registros de produtos alternativos”.
Regando a primeira colheita
O
documento do plano detalha as 125 medidas das 14 metas com relação ao órgão responsável, cronograma e orçamento. A construção dessas medidas começou em seminários municipais e estaduais abertos a qualquer pessoa da sociedade. Propostas e críticas foram colhidas pela Comissão Cnapo — formada pelos principais movimentos sociais do campo: ANA, a Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), a Articulação Semiárido (ASA), Via Campesina, Marcha das Margaridas, Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), a Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar (Fetraf). É papel da Comissão e outros conselhos e fóruns monitorar de perto e propor novas alterações das medidas.
Claro que o resultado final do plano não é a
política pública ideal dos movimentos, mas estes entendem que essa versão é muito melhor do que as apresentadas anteriormente. “A gente considera que o plano tem ações muito significativas. Se ele for executado, de fato vai contribuir para o fortalecimento, aumento e diversificação da produção agroecológica” – afirma Dênis. “O desafio maior agora é ele não ficar na gaveta. Porque a gente sabe que esse risco existe”. Pela relação de diálogo que os movimentos há anos vêm construindo, e o aparente empenho dos gestores, esse não parece ser o destino do plano. Mas, reflete ele, “vai depender muito da capacidade de pressão”; [...] “o Plano não é do governo, o Plano é da sociedade. Que possa ser levado pelos movimentos como instrumento de pressão nas suas jornadas de mobilização e de luta”.
“Entendemos que ele vai operar num contexto político difícil. Um plano de agroecologia não é compatível com o modelo do agronegócio. Questionamos essa ideia de que é possível a convivência pacífica e harmoniosa desses dois modelos”. Têm clareza de que só será possível de fato consolidar a agroecologia como modelo quando o governo retirar o apoio ao agronegócio. E isso inclui não só o desigual subsídio financeiro, mas também o fim da compactuação quanto ao uso dos venenos, à destruição das reservas ambientais e a necessidade da reforma agrária.
A mudança de paradigma vai sendo feita aos poucos. O
relatório sobre o Direito à Alimentação, apresentado por Olivier de Schutter ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, em janeiro de 2012, foi decisivo para a articulação com o governo, lembra o
agroecologista Oliver Blanco: “É uma ampla revisão de literatura científica publicada nos últimos 5 anos, que ‘identifica a agroecologia como um meio de desenvolvimento agrícola que tem resultados comprovados para um rápido progresso na concretização do direito à alimentação’”.
Para alcançar a autonomia dos produtores e dos consumidores, a prática de outro modelo de ciclo alimentar é um dos pontos centrais. E a questão que paira é: o que você alimenta, quando se alimenta? Para Blanco, os movimentos sociais não temem a contradição ainda existente, “pois estão retomando um modo de produção há muito tempo negligenciado, desde os anos 50, jogado no fundo do poço pela ditadura e agora, protagonista de uma história real: 2014 é Ano Internacional da Agricultura Familiar no mundo”.