A entrevista foi concebida em janeiro de 2012 a revista Caros Amigos. Pela sua importância, vale a releitura e o registro aqui neste blog de domínio público pela total independência do território brasileiro. Tá nessas?!
"O fim é a libertação do homem desde as suas bases de pão e de
abrigo, de amor e de sonho, de aspiração e criação, até que se
transformem as relações de semelhante a semelhante, e se estabeleça em
toda a plenitude a dignidade de uma paz e de uma solidariedade
contritamente vividas." (Trecho do texto Verdade e Liberdade
extraído das páginas 215 e 216 do livro Viva Pagu – Fotobiografia de
Patrícia Galvão, de Lúcia Maria Teixeira Furlani e Geraldo Galvão Ferraz)
O.Blanco
Texto e Fotos de André Guerra, publicado 16 janeiro de 2012
Cada
vez mais a população está consciente da incompatibilidade do desejo por
qualidade de vida e o atual cotidiano das grandes cidades. Um dos
pontos mais sérios acerca desta questão é o fato de uma pesquisa recente
ter revelado que o Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos do mundo.
Além disso, a campanha “Agrotóxico Mata”, encabeçada por movimentos
sociais e estudiosos da área, estimou que cada brasileiro consome em
torno de 5,2 litros de veneno por ano. O furor que a campanha está
causando faz com que uma quantidade cada vez maior de pessoas tomem
partido da necessidade de novos hábitos e padrões de alimentação.
No
entanto, o oportunismo de grandes transnacionais traz o risco de não
haver uma “transformação”, mas sim, mais uma readequação ao já arcaico
modelo. Sobre isso, a Caros Amigos conversou com Sebastião Pinheiro,
especialista no tema. Engenheiro Agrônomo e Florestal, atualmente
Pinheiro atua no Núcleo de Economia Alternativa (NEA), da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Entre outros livros, ele escreveu
“Ladrões de Natureza” e “A Agricultura Ecológica e a Máfia dos
Agrotóxicos no Brasil”. Neste ano, ele lançou a “Cartilha da Saúde do
Solo”, que aborda temas como a importância do pequeno agricultor
apoderar-se das técnicas tradicionais e eficazes que compõem, segundo
Pinheiro, a “verdadeira biotecnologia”.
Os
textos também trazem dados de como as grandes transnacionais estão
inviabilizando a prática da agricultura dos pequenos produtores, criando
um novo mercado baseado na biotecnologia industrial, pretensamente
“orgânica”.
Como o senhor vê a questão dos agrotóxicos hoje?
Em
1978 eu comecei a dar treinamentos sobre o uso de agrotóxicos. Havia
pessoas que defendiam o bom uso dos agrotóxicos, e eu sempre dizia que o melhor uso do agrotóxico é não usá-lo.
Eles diziam que eu estava louco. Em 1981, eu fui enviado pra Alemanha
por Delfim Netto, do Ministério do Planejamento. Lá, eu percebi uma
coisa fantástica: na Alemanha, o agrotóxico era coisa do passado, já era
assim em 1981. A Alemanha toda estava preparando a biotecnologia de
ponta para o futuro. Eu cheguei lá e vi que só se falava em agricultura
alternativa, que aqui, hoje, se chama de orgânica. E agora nós estamos
ainda brigando contra os agrotóxicos.
E como está a situação dos transgênicos?
Eu
comecei discutir os transgênicos em 1986. Eu dizia que essa coisa não
iria longe, as indústrias tinham que ter alguma coisa guardada na manga.
Ninguém é imbecil de comer veneno e ter câncer, mesmo que isso seja uma
indústria lucrativa. Ninguém vê, mas comer veneno e ter câncer é altamente lucrativo.
Basta ver os doutores de oncologia. Qualquer pessoa que chega aos 65
anos começa a reclamar que dói a próstata, dói isso e dói aquilo. Quando
não deveria ser assim. Não deveria ser macabro. Eu deveria ser feliz
até morrer. Os transgênicos começam a ser criados como artifício
industrial militarista-econômico-financeiro em 1930.
Como é a regulamentação dos transgênicos?
Em
1988, houve a Constituinte. O então deputado Carlos Araújo, ex-marido
da Dilma, em uma ocasião me perguntou o que eu achava da constituinte
gaúcha. Eu disse que teria que ser acrescentado um item. Disse que
surgiria um tema que iria fazer com que os agrotóxicos ficassem no
chinelo: os transgênicos. As multinacionais iriam exacerbar sua atuação e
iriam concentrar seu poder. Ele acrescentou o item e hoje o artigo
existe, é o 251 da Constituição: “toda pesquisa, trabalho ou atividade
que envolva organismos geneticamente modificados deverão ter permissão
prévia do estado do Rio Grande do Sul”. Na constituição gaúcha está
escrito isso.
Qual o destino dos agrotóxicos?
Nós
temos a Lei 7802/89. Vou repetir uma conversa que eu tive com o
pessoal do MST daqui [Rio Grande do Sul]. Eu disse para eles que para
cada ato de fiscalização que eles me trouxessem dessa lei, eu pagaria
100 dólares – não tenho, mas pagaria. Qualquer ato de fiscalização da
Lei Nacional dos Agrotóxicos, em qualquer um dos 25 estados da
Federação. Lógico, não deve ser zero, deve ter um ou dois, aqui ou ali,
mas por quê? Porque é proibido fiscalizar! A quem beneficia a lei hoje?
Preste atenção, qual é a palavra criada por Bush para o mundo: a palavra
terror. A palavra mais importante do planeta nesses últimos 10 anos foi
terror. O terror impõe medo. O terror é o medo que o pequeno impõe ao
grande quando o grande não consegue controlar o pequeno. Isso é
terrorismo. O medo faz parte do cotidiano das pessoas. Quando você me
traz a palavra agrotóxico, o contexto que eu vejo lá fora é de medo. Eu tenho medo do agrotóxico, então eu quero um alimento orgânico.
Vai ser mais caro ou mais barato? Ele vai ser para uma elite mais
abjeta e mais detestável. Essa é minha crítica à campanha dos
agrotóxicos. Me dou muito bem com o Stédile, conheço ele, mas eu disse
pra ele: não façam isso porque vocês não podem dar conta. Eu sempre uso
uma expressão “ao inimigo eu não dou trégua, nem munição”. O problema do
agrotóxico no mundo começa em 1961, quando a mulher norte-americana
Rachel Carson, uma grande bióloga, descobre que está com câncer de mama,
que era mortal naquela época. Ela escreve uma série de crônicas no New York Times
sobre o que os Estados Unidos estavam fazendo com a sua agricultura. Na
verdade, era o petróleo se transformando em agricultura. Ela compila
isso no livro “Primavera Silenciosa”. Em 1968, tem início uma campanha
contra os agrotóxicos no mundo inteiro. Quem é que faz essa campanha? As
indústrias. Elas criam uma campanha controlada. Ou seja, conduzida e
manipulada pelos interesses delas. Elas usavam a tecnologia. Quem tinha
tecnologia de ponta de agrotóxico? Alemanha: 95%; Shell
(anglo-holandesa); ESSO (grupo Rockfeller).
É possível produzir alimentos orgânicos para toda a sociedade?
E por que não?
De que forma se trabalha para isso?
Nós
estamos fazendo uma campanha diferente. Nessa campanha, um curso foi
dado ao MST, nos Filhos de Sepé, em Viamão (RS), durante três dias. Eu
não estou mais falando de veneno, vou explicar o porquê. O veneno é um
problema da indústria, não é um problema nosso. Qual é a minha
preocupação: eu tenho um solo, se o solo é são, a semente colocada nele
irá se desenvolver de forma sadia, o fruto dessa planta será sadio e
quem comer o alimento vai ter saúde. Temos uma trilogia: solo são,
planta sã, homem são. Preciso gastar algum dinheiro ou preciso trazer
educação? Eu não retrocedo. A indústria pode induzir e manipular, mas eu
estou lá na frente. A indústria jamais quer sua imagem afetada. Ninguém
limpa a imagem de um produto no mercado. Hoje as empresas do ramo dos
agrotóxicos estão com o pé preso. E eu vou manter o pé delas preso. A
Bayer não vai se tornar uma empresa “sustentável” de “inóculos
saudáveis”. Inóculos saudáveis são aqueles das vovós sertanejas. Aquilo
sim é biotecnologia, aquilo sim é agroecologia crioula, cabocla,
nativa, negra. A da Bayer, não. A briga não mudou de plano. O plano é o
mesmo. A Bayer é uma empresa que fabrica o mesmo produto, o que mudou
foi a matriz.
A luta tem de ser travada em qual plano?
Qual
é o futuro? O futuro tem uma matriz tecnológica: a biotecnologia. Se
você não souber biotecnologia, cai fora. Sai da reta porque eles vão
passar por cima. É preciso dominar a biotecnologia quilombola, crioula.
Se eles vão criar um mercado para daqui 25 anos, eu não estou
preocupado com eles. Eu estou preparando esse mercado para dentro de
três anos. Os orgânicos do Rio Grande do Sul são um dos melhores do
mundo e não são elitizados. É isso que nós temos que fazer, senão eu
danço a música que o outro toca.
Há um interesse das transnacionais nos produtos orgânicos?
A
Inglaterra é campeã em te manipular e te induzir. Ela é a
contra-inteligência hoje. Não pense que a Bayer, com um orçamento que é
quatro vezes o do Brasil, e não tem 200 milhões de habitantes, não
protege a sua marca, o seu nome. Em 1986, eu estava no IFOAM, a
Federação Internacional dos Movimentos da Agricultura Orgânica, e o José
Lutzenberger foi falar pela América Latina, e eu, pelo Brasil. A
preocupação era o caso dos agrotóxicos no Brasil. Na hora do cafezinho,
me disseram que tinha um cara com um crachá da Bayer no peito. Eu fui
conferir. Chego lá, são quatro pessoas de gravata e terno preto. Eu
olhei pra eles e falei em alemão: “Perdoem a minha indiscrição, eu teria
uma pergunta para fazer para os senhores: esse aqui é o quinto
congresso mundial de agricultura orgânica, o que a vossa empresa faz
aqui?”. Sabe o que o cara me disse: “Saiba você que esse será o nosso
maior departamento para dentro de 20 anos”. Ou seja, a Bayer já
projetava como ia ganhar dinheiro no futuro.
Qual seria a participação deles nesse novo mercado?
Às
vezes você nem vê. Eles estão aqui porque agora eles não são a linha de
frente da ANDEF [Associação Nacional dos Defensivos Agrícolas, hoje,
Associação Nacional de Defesa Vegetal], quando subornavam os
funcionários burocratas do Ministério da Agricultura e quando
corrompiam. Eu já presenciei várias vezes, em plena ditadura, aqui no
Rio Grande do Sul, eles pegarem centenas de cruzeiros e colocarem na mão
do jornalista para que ele fizesse uma matéria favorável a eles. Hoje
eles estão na FIESP [Federação das Indústrias do Estado de São Paulo].
Qual é o papel específico das empresas nessa nova economia?
Você
acredita ainda que existe o Estado-Nacional? Nem nos Estados Unidos
existe. O que existe hoje é um colegiado de grandes empresas. Se quiser
rir um pouco: Jorge Gerdau Johannpeter faz parte do governo Tarso Genro.
E o pior é que o Tarso não sabe. E nós não nos damos conta disso. Hoje o
jogo é esse. Não há Estado-Nacional. Quem manda é um colegiado de
empresas. A palavra máxima de Adolf Hitler era a eugenia. Se você come
cesta básica, eu não preciso te tirar o direito de voto, ele cai por si
só. Se você comer orgânico, você é ascendido. Que tipo de sociedade é
essa onde o pobre é obrigado a comer merda e o rico pode pagar mais caro
por um alimento orgânico? Ela é democrática, fraterna? Não. É uma
sociedade fascista. E não tem futuro.
Qual a responsabilidade que as indústrias têm sobre os agrotóxicos?
Quando uma indústria cria um agrotóxico, a primeira preocupação dela é procurar um governo que o registre.
Porque a indústria só tem responsabilidade por 99 anos. A
responsabilidade de um governo é eterna. Quem registra é o governo. Ele
assume o interesse da indústria e executa o que a indústria quer. Por
isso que, nos Estados Unidos, quando a indústria quer registrar algo, o
Tio Sam diz: “eu registro, mas quero um depósito de 250 milhões de
dólares para garantia de que não há o falseamento de nenhum dos dados e
se houver algum problema eu não distribuo na costa do povo americano”.
Recentemente, deu uma confusão com uma merendeira de uma escola com
relação a um veneno de rato colocado na comida. Eles não estão
discutindo uma questão mais importante. A empresa do veneno, chamada
Nitrosin, faliu há 30 anos. Eu só observo e penso quem é quem e por quê.
Tudo, hoje, é jogo de inteligência. A coisa funciona assim: o décimo
quarto assessor da OMC, não é o primeiro, é o décimo quarto, liga para o
presidente e fala “senhor presidente, aquele crédito que o senhor
precisa para habitação, saúde, infra-estrutura está pronto para ser
liberado, estou com a caneta na mão, só precisamos de uma coisa:
transgênicos, agrotóxicos...”. É assim que funciona. Se eles quiserem,
ainda, telefonam pra Globo, SBT, Bandeirantes.
Quais os países que registram os agrotóxicos?
Hoje, é Brasil. Brasil e China.
Há algum episódio marcante em função do uso dos agrotóxicos no Rio Grande do Sul?
Um
dia eu estava na UFRGS e chega uma menina e diz que é de Santa Cruz do
Sul. Ela fala que vários pais dos amigos dela de Venâncio Aires estavam
se suicidando. Eu perguntei se eram produtores de fumo, ela confirmou.
Como ela era advogada, eu sugeri que ela pegasse os prontuários das
ocorrências. Indiquei que pegasse os dos últimos dez anos. Na
Argentina, onde eu estudei, um professor uma vez me disse que no momento
em que os inseticidas fosforados foram introduzidos na fumicultura, os
suicídios cresceram em nove mil por cento. Depois de um tempo, eu
comecei a montar os perfis dos prontuários que ela trouxe. Começamos a
trabalhar eu, ela e mais dois: um médico com especialização em
mortalidade e um especialista em fosforados. Num certo momento, eu falei
para ela que não estava gostando do que estávamos fazendo. Nós
estávamos trabalhando conforme a ciência acadêmica brasileira e eu não
sou isso, nunca fui e nem quero ser. Eu disse que nós tínhamos que ter
uma atitude. E uma atitude não era pesquisar a desgraça alheia. A
atitude teria que ser parar com aquela merda. Ela me perguntou o que
poderíamos fazer. Eu disse que deveríamos ir à comissão de Direitos
Humanos e falar com um deputado bastante interessante, que depois não se
elegeu mais, o nome dele era Marcos Rolim. Ele olhou e propôs que
fizéssemos uma audiência pública, que era o que nós queríamos. Nós
tínhamos encontrando que, no Rio Grande do Sul, havia o dobro de
suicídios em comparação com o Brasil, e Venâncio Aires tinha quatro
vezes o número do Rio Grande do Sul. Isso é um dado que assusta. Os
resultados causaram uma comoção mundial. Se você procurar na agência
espanhola, Reuters, AP, AFP, a agência alemã, todo mundo repercutiu a
denúncia de Venâncio Aires. No mundo, o suicídio mais comum é na faixa
etária entre 17 e 18 anos ou entre 60 e 70. Em Venâncio Aires, era entre
30 e 35.
Como essas indústrias estão interferindo na forma de pensar a agricultura?
Você sabe quem está fazendo a “Revolução Verde” na África, sem agrotóxico? Kofi Annan, Bill & Melinda Gates, Fundação Rockfeller,
EMBRAPA. Todos estão lá e você pensa “o que tem a EMBRAPA a ver com a
África?”. Os maiores centros financeiros do mundo estão na África e nós
não estamos nem nos dando conta disso, nem sabemos o que significa. O
nosso problema, hoje, é que nós não nos adaptamos à OMC e à economia
globalizada. Um dado impressionante é que a Nestlé está fazendo
contratos de agroecologia com agricultores nordestinos, aqui no Brasil.
Orgânicos para a Nestlé! A lei brasileira de orgânicos não tem nada a
ver com agricultores, ela se chama 10831/03. Hoje, na Etiópia, existem
40 milhões de pessoas passando fome. Sabe qual é a proposta da Nestlé e
da PEPSICO? Barrinhas de cereais. Uma barra de cereal tem um custo de
0,01 centavo de dólar. Ela deve ser vendida a 3 dólares para as Nações
Unidas. Dá margem de lucro ou não dá? Hoje, para produzir orgânicos, você precisa pagar um certificado de orgânico que pode custar até 25 mil dólares. A lei te obriga a fazer uma certificação de alimento orgânico pela ECOCERT, por exemplo.