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"Harmonizo meus pensamentos para criar com a visão". "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível".

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

"A luta segue e segue, ombro a ombro"

12 de janeiro

Por Sebastião Pinheiro

Dentro de dois dias acontece a primeira volta do Sol da passagem para a Luz do amigo Eugenio Gras.

Uma das coisas mais difíceis de entender é a plenitude do pensamento alheio; e adoro complicar o meu para que ninguém o compreenda de uma forma simples ou única, o que é uma arte de decifrar enigmas.

De todas as qualidades que encontrei no México, destaco a facilidade cultural que eles possuem para lidar com a morte. Não sei se marcado pela trágica morte do meu pai quando eu tinha apenas 3 anos ou do meu tio 20 anos mais tarde ou pela violência nas favelas (bairros) da periferia do Rio de Janeiro na minha infância, onde assistia a um assassinato por semana e sofria agressões familiares até 3 vezes ao dia.

Ontem a companheira de um amigo recentemente falecido pediu-me que escrevesse algo sobre minha amizade com ele para o primeiro aniversário de sua morte. Estranha passagem em direção à Luz, já que aconteceu no aniversário de nascimento do meu pai. O pior é que meu amigo morreu aos 60 anos, após uma doença grave. Eu havia entrado em contato com eles que estavam na Espanha, de Vancouver, onde eu buscava reatar-me com minha filha migrante.

Procurando o traço condutor da caneta sobre o papel, não foi necessário mais que alguns segundos para encontrar a inspiração para recordar do amigo Eugenio Gras.

Estávamos perto do grande lago artificial Apanás da barragem hidrelétrica na área de turismo de aventura de um gringo norte-americano para um "diplomado" em “agricultura orgânica” em Jinotega, na conflituada Nicarágua. Entre os estudantes da América Central havia muitas pessoas que sofreram com a revolução, a contra-revolução e a contra-contra-revolução. Um ambiente onde se encontram todos os “resíduos e lixos sociais”, com raríssimas exceções de valor. Guerra é barbárie e, quando heteronômica, é elevada ao cubo.

     Ele era humilde e sereno, ali quando via os cozinheiras pondo os frangos para cozinhar sem tirar os sacos plásticos, Eugênio foi ensinando a elas que o plástico era muito perigoso e deveria ser retirado antes e os frangos bem lavados... Elas lhe agradeceram.

 Eu havia colocado em meu plano ensinar os interessados ​​em trabalhar com filhos de campesinos nas questões de agricultura em ação contra os Clubes Infantis e Juvenis “4 H” da Fundação Rockefeller e Eugenio estava muito interessado em participar. Foi a primeira ação do curso. O local foi a igreja do povoado próximo à pousada onde o curso seria realizado, tivemos a manhã inteira para a ação. O padre era um jovem, da ordem dos "Arautos do Evangelho" com botas militares pretas de cano alto. Eugenio percebeu meu aborrecimento ao olhar a indumentaria do sacerdote.

Entre as crianças que estavam na oficina, havia uma que era ostensivamente segregada pelas outras (bulling). Eugenio se encarregou de confortá-lo. Trabalhamos bem e vimos o menino de apenas nove anos se soltar e ir trabalhar com dedicação nos grupos e nos jogos.

 Seu nome era "Amado", filho de uma menina com deficiência mental, que foi estuprada (violada) por um jovem, que foi levado à justiça na cidade. Amado nasceu e sua mãe também morreu. Eugenio ao me contar de sua miséria de criado na Casa de párroco (paróquia) e encarregado junto a senhora de limpar e cuidar da Igreja. Perguntei-lhe se havia lido "El Lazarillo de Tormes", o maior livro antes de Cervantes. Ele riu e disse: Isso não é rir, é trágico. A aula foi magnífica que até o dono da pousada ficou entusiasmado em participar dela. O menino nos acompanhou até a oficina, pois queria participar. Estava muito sujo e todo o seu corpo estava coberto de picadas de pulgas e percevejos.

Eugenio deu-lhe uma toalha e sabonete e recomendou que lavasse bem as orelhas e o pescoço. Ele deu a ele uma bela camisa e shorts... Fomos almoçar. A criança estava mais que consolada, estava feliz ... Isso um órfão sabe muito bem perceber. Depois da comida. O menino muito feliz imitava o cura (ou padre) que, ajoelhado aos pés da cama, se flagelou com o rosário imaginário implorando misericórdia, em penitência à Virgem...

 Eugenio e eu entendíamos o agrado e a crítica, ainda mais quando ele me disse discretamente: “Esse é o realismo fantástico de García Márquez”. O que me lembrou da minha infância nas casas de parentes não muito diferentes em conteúdo e habitat. Lá fora ocorria o início dos cultivos transgênicos e sua agressividade comercial em meio à mediocridade e à corrupção governamental e tecnológica.

Sim, os vergões da pulga e dos percevejos eram da convivência de Amado com os cães, que eram mais do que companhia, sem ofender, eram a sua referência humana. Lembro-me de ter dito a ele: Muitos têm uma carga genética, de origem branca que é tratada de forma superior pelo darwinismo vitoriano, mas nosso fenótipo é nativo, local em alguns com mistura com outro nativo transplantado da África, ambos considerados inferiores e procuram ignorá-lo ou negá-lo. Só uma boa escola permite perceber isso, não tenho vergonha em admitir, eu mudei em La Plata e pude aprimorar-me no México.

    Após a refeição, cada um de nós teve seu grupo e aula até a tarde. Eugenio o colocou em sua cama para dormir. E a cada 50 minutos ele vinha observar e eu controlava pela janela da minha sala que ficava a menos de 50 metros de distância. O padre veio para abençoar a oficina e se quer perguntou sobre a criança. Ao vê-lo limpo e feliz, praticamente não o reconheceu. O menino ao vê-lo mudou seu semblante, eu órfão, olhei para o Eugenio e ele falou com os olhos as três letras feias contra o padre (fdp).

 Eu, cínico, perguntei ao padre. Se a ordem foi criada no Brasil pelo J.P II, você já esteve lá, temos milhões de Amados em simbiose com o "nobre" de Lazarillo de Tormes. Ele fez que não entendeu, mas Eugenio sim por causa do sorriso.

Na saída da oficina despedimo-nos do Amado com gelados e tortas… Eugenio o presenteou a ele e à empregada da paróquia cem dólares. E disse, cuide dele, com muito amor. A senhora em lágrimas agradeceu...

 Todas as manhãs, acordávamos antes do nascer do Sol, para olhar por alguns segundos a energia radiante de seu nascimento, "tomar neutrinos no café da manhã..." No último dia, um jovem estudante de engenharia aluno do Diploma, que sempre buscava estar por perto durante as refeições e ele tinha o quarto dele ao lado do nosso disse: - eu escuto o que vocês falam de noite e de manhã, confesso que não conseguia entender no começo, mas acho que agora posso acompanhar, pena que o curso está terminando.

Participei com o Eugenio em pelo menos dez cursos de graduação (diplomados), ele é uma das pedras angulares, cimento no resgate da Cromatografia de Pfeiffer. Gostei mais das suas interpretações dos “cromas”, onde eu percebia a influência da formação do ITESO - Guadalajara, onde estudou. Meu amigo era uma pessoa que tinha um berço, um coração e encarnava o fenótipo e a cultura mexicana como poucos, o tenho como um exemplo. Hoje é luz e o Sol completa a primeira volta de sua chegada. Sentimos sua falta e ele é necessário em meio a essa pandemia de violência. Me fazem falta as histórias de suas viagens exóticas.

Amado, o Lazarillo Nica deve ter cerca de 22 anos. O que é da sua vida? Garanto que nunca será esquecido. Gostaria encontrá-lo para lhe perguntar, não sobre sua vida como Lazarillo, mas por ter conhecido alguém que demonstrou respeito, afeto e amor por ele como um cidadão livre, um verdadeiro pai, um verdadeiro franciscano, um monge tibetano, mais um ser de luz à frente em nosso tempo.

 Ele me convidou para apresentar seu primeiro livro. Ele é o ser de luz irradiante que conheci, me ensinou sobre o comportamento dos cangurus e a necessidade de demonstrar submissão à raiva deles..., sempre o respeitei como um espírito de muita luz.

Eu fazia dois anos que havia perdido minha esposa para a mesma doença que nos assombra, mas em muitos como Eugenio Gras procuramos continuar a luta que segue e segue pelo biopoder camponês. Pobre padre de botas militares, que não sabia o que era espiritualidade, deveria conviver com Eugenio algumas horas, sim, algumas horas bastasse. O primeiro croma feito por Eugenio em Cualtla, Puebla .... horizonte zero em carvalhos.....

***

- https://oextensionista.blogspot.com/2020/01/eugenio-gras.html

 



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