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"Harmonizo meus pensamentos para criar com a visão". "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível".

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Agroecologia para concretizar outro mundo possível: a lente de Sebastião Pinheiro

 No contexto da pandemia de Covid-19, o “retorno à normalidade” parece difícil, devido à crise ambiental gerada pelo sistema capitalista e seus modos de produção. Do Brasil, Eliege Fante e Cláudia Moares destacam a importância de refletir sobre essa crise e para isso resgatam o pensamento agroecológico do engenheiro agrônomo Sebastião Pinheiro (Tião). Sua lente inclui a alternativa de uma “pecuária familiar agroecológica”. É uma ponte para a pós-pandemia, uma forma de projetar outro mundo possível.


Dossier N° 1: "Animais e saúde: modelo agrícola e alternativas"

Por Eliege Fante* e Cláudia Moraes**
 
Engenheiro agrônomo Sebastião Pinheiro 
 
 
Há 20 anos a cidade de Porto Alegre (RS) organizou o Fórum Social Mundial para sonhar e planejar “Um outro mundo possível”. Neste ano, a pandemia da Covid-19 é para alguns uma fase a se encerrar quando houver uma vacina que previna a infecção pelo novo coronavírus. No entanto, a suposta volta ao que chamam “normal” é improvável, devido à escassez do volume e/ou da qualidade dos bens comuns: água, solos, ar, minérios, os “recursos” na lógica econômica neoliberal, a responsável pelos impactos sociais e pela degradação ambiental. Os alertas sobre esse resultado ecoam há mais de 50 anos, como fez Rachel Carson no livro de Silent Spring (Primavera silenciosa, 1962), ao denunciar o uso de venenos na agricultura.

Neste contexto em que outras práticas sociais e econômicas são urgentes e, onde o agronegócio, conduzido pela parcela minoritária, ultra rica e retrógrada da sociedade brasileira, tem significativa responsabilidade sobre o elevado índice de pobreza e devastação verificado no país, propomos o pensamento agroecológico como ponte nesta travessia ao pós-pandemia. Há mais de 40 anos, o engenheiro agrônomo e florestal Sebastião Pinheiro, cultiva e vive a agroecologia dedicando o mesmo valor e amor à ciência e ao saber ancestral, local, tradicional e originário. Dessa maneira, além de contribuir para a aproximação desses, desenvolveu a habilidade de dialogar com cientistas, pesquisadores, professores, técnicos, aprendizes e camponeses em suas distintas culturas com igual afeto, respeito e humildade.

Sebastião ou Tião, 73 anos, em isolamento físico preventivo devido a Covid-19, aderiu às palestras e cursos virtuais. A robusta audiência busca experimentar uma forma mais solidária e justa de se relacionar com os bens naturais e o alimento que nos provêm. É de uma dessas lives disponível no Youtube, precisamente a de um curso realizado recentemente, que coletamos algumas das suas ideias para elaborar este trabalho.

O caminho percorrido tem a marca da educação. A agroecologia é a especialidade de Tião ou antes o estudo do funcionamento da vida desde as partes até o todo e do todo até as partes. A compreensão desse funcionamento implica uma abertura tamanha que abarca a escuta dos seres, dos habitantes do lugar, dos nativos do território. Principalmente, através dos mais antigos. Explica que o seu trabalho é enquadrar a técnica à história e à geografia para que as pessoas possam “reescrever, redesenhar, adaptar, cantar em prosa, verso e cordel” tornando-se protagonistas. Quanto ao técnico, afirma que é “um vetor do conhecimento”. O conhecimento é para Tião o motor da transformação. Mas será útil se compartilhado em comunidade e que ela se veja como um lugar de construção da participação. Essa convivencialidade entusiasma os jovens e é de máxima importância para a agroecologia: “Sem jovens, não há agroecologia.”

Assim reconhecemos a validade de aceder ao “protagonismo legítimo” através da troca de técnicas e experiências. Com essa subversão à colonialidade, alçamos as condições de reconhecer os Caiapós, os Xavantes, os Apurinãs, entre outros como “grandes agricultores” pelas palavras de Tião. “O camponês indígena hoje está nos ensinando uma série de valores, será que é possível fazer agricultura diante da mudança climática sem colocar carbono no solo?”, nos exorta a buscar compreender as práticas e as experiências dos povos também de outros países como os Mapuche (Chile) e dos revolucionários Tupamaros (Uruguai) e Zapatistas (México). Ao ilustrar citando uma atividade econômica em harmonia com o ambiente lembra da associação entre a pecuária e o cultivo do algodoeiro arbóreo mocó em Seridó (Ceará, Brasil) durante o século 20: “o trabalho das ligas camponesas constituiu o sistema mais perfeito que existe e que foi copiado por outros países, porque o cultivo arbóreo do algodão sombreava o gado, embaixo cultivava a macaxeira, as folhas secas iam para as vacas, o estrume servia ao solo; era feito quase totalmente por mulheres e jovens.”

Estudos recentes já confirmam que o manejo adequado das pastagens na pecuária pampeana também acumula carbono. E é dos campos do bioma Pampa no Rio Grande do Sul, que constituem 60% do estado onde residimos, que Tião nos fala da pecuária familiar agroecológica, prática tradicional da mesma forma nos campos do Uruguai e da Argentina. Ao lembrar de José Lutzenberger (1926-2002) corrobora uma de suas frases mais assertivas, de que propriedade rural no Pampa é a coisa mais equilibrada que existe. E por quê? Tião explica que nesse bioma onde o ambiente é agropastoril, o habitante ou o gaúcho, conhece a biodiversidade e, por consequência, os usos possíveis e os limites para a sua exploração para a sobrevivência ou de finalidade econômica. Os grandes latifúndios de monocultura de soja desfalecem este equilíbrio, impondo a lógica comercial na qual se propõe a ideia de uma “segurança alimentar” com alimentos industrializados, dissociando-se, desta forma, a soberania alimentar das culturas dos territórios.

Ao relacionar as ações dos camponeses às dos indígenas e às dos territórios irmãos dos vizinhos Uruguai e Argentina, Tião nos faz ver que sempre coexistimos com “outros mundos possíveis” ainda que o discurso do agronegócio e da mídia hegemônica, entre outros, insista em nos distrair disfarçando e/ou apagando os traços desses modos de vida presentes na nossa sociedade. A resposta de Tião à lógica de “tirar o poder do agricultor e do pecuarista familiar” é difundir a agroecologia perseverando na multiplicação de experiências como a que viveu de criação da Feira dos Agricultores Ecologistas (FAE) em Porto Alegre. Segundo ele, ao ser realizada na rua, “quebrou a espinha dorsal do sistema de abastecimento” que se impunha com a cumplicidade dos governos.

Tião também critica o agronegócio pelo apagamento da “qualidade de produtor de conhecimento” que constitui os agricultores e os pecuaristas familiares. A retomada ou a resistência deste conhecimento tem um significado ultra social, conforme explica, que se manifesta por uma ética empenhada na transformação da energia do sol em alimento para todos com igualdade. “É o biopoder que constrói e que construiu a forma da sociedade, a forma de construir a riqueza e a saúde.” Ele distingue o agronegócio como aquele que não se preocupa com os impactos dessas inter-relações devido à crença nas novas tecnologias e soluções desenvolvidas pela ciência alinhada ao mercado e para o benefício dos seus pares econômicos. Lembra que a mecanização eliminou postos de trabalho e a substituição dessa ética da diversidade pela monocultura de commodities provocou a simplificação da dieta alimentar e a intoxicação generalizada por agrotóxicos com o aumento da incidência e gravidade de doenças como o câncer. E é este o alerta que faz a pecuária agroecológica familiar diante da mecanização introduzida pela criação de gado confinado. Além de eliminar a campereada, ou seja, os postos de trabalho com o gado no campo, tira o alimento natural que o bioma campestre pode oferecer aos animais pastadores.

Tião nos estimula a perceber a vida como um grande anseio para a humanidade. Com otimismo nos convida a olhar para o futuro considerando práticas que surtem resultados como a produção saudável de alimentos e a sua distribuição, solidária e generosa, às comunidades a exemplo do que fazem movimentos como o MST no Brasil em meio a pandemia. Ao mesmo tempo invoca a nossa capacidade para compreender a espiritualidade dos camponeses que os faz respeitar a terra e agradecer pelos alimentos que ela nos retorna. “Agroecologia é um caminho para a humanidade encontrar a felicidade”.

A nossa perspectiva é contribuir com a circulação das ideias da agroecologia pela lente de Sebastião Pinheiro. Graduado na Argentina, realizou pesquisas na Alemanha na área de Toxicologia e Poluição Alimentar e Meio Ambiente. Neste 2020, em que mais precisamos refletir sobre a realidade da crise ambiental vivida pelo planeta, gerada pelo sistema capitalista que não tem a perspectiva da reciprocidade porque da natureza só extrai, registramos pensamentos que nos trazem luzes e nos impulsionam.

A concretização de outro mundo possível depende de pensamentos como o da agroecologia, ou seja, baseados na profusão das partilhas entre os povos e dos saberes da cultura camponesa e das culturas nativas como a pampeana. Nesta outra lógica, a aplicação da tecnologia objetiva preservar a vida, estimular a participação cidadã e fortalecer a democracia, obtendo alimentos saudáveis e em harmonia com a biodiversidade.

Referência

Pinheiro, Sebastião. (2020). Curso "Biopoder Camponês - Bombeiros Agroecológicos: Agroecologia como alternativa à agricultura convencional" dias 7 e 9 de julho de 2020 organizado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Grupo de pesquisa, estudos e extensão em Geografia, Educação e Ambiente (Sinergea). Recuperado de youtube.

* Eliege Fante é jornalista e doutora em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental UFRGS-CNPq e é associada ao Núcleo de Ecojornalistas (NEJ-RS).

** Cláudia Moraes é jornalista e doutora em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental UFRGS-CNPq 
 
 

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